segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Situação

- Salve, Cleiton!
- Fala, Chipanza, como tá?
- Tudo certo, meu querido.. Teodoro, aquela breja gelada!!
- E aí, irmãozinho, o que me conta de novo? Quanto tempo, cara!
- Pois é, andei dando uma sumida por uns tempos.. coisa de mulher grávida, sabe como é..
- Puuuutz, cara, é papai?!
- Pois é..
- E como foi?
- O processo?
- Não, porra, a gravidez, as sensações.. conta aí!
- Ah, foi bem complicado.. a Patty queria comer de tudo, até ponta de cotonete. Limpa, pelo menos..
- Putz..
- Daí pra pior, Chipanza.. começou assim. Sorvetinho de morango com chantili, ameixa com flocos, passas ao run, melancia com leite condensado..
- Sei..
- Daí passou pra cheese-burguer triplo com muito picles, pimenta então.. nem se fala. A hemorroida que o diga..
- Patty tem hemorroida?
- É, Cleiton, é..
- Porra, nunca me disse nada..
- E deveria?
- Bom.. nada não, continua! Teodorooo!!! Eu disse gelada, porra!!!! Recolhe essa aqui que xocou..
- Ah, daí foi seguindo pra parte do enjoo. No começo tava de boa, era com cheiro de perfume, parei de usar. Depois foi pra cheiro de amaciante, pedimos pra Cícera diminuir a quantidade. Depois foi de gasolina.
- Gasolina?
- É, não podia abastecer no posto com ela que já vomitava no chão. Só abria uma fresta da porta e despejava o que tinha comido no pé do frentista..
- Bom, pelo menos não era no carro..
- É, ás vezes não dava tempo.. Passei a sair de casa com um saco plástico..
- Complica assim, né..
- Nem me fala.
- E o sexo?
- Ah, o sexo.. acho que nem sei mais fazer isso, cara.. enjoou disso também.. e pior que eu tinha mor tara com esse negócio de grávida, sabe..
- E nem tentaram?
- Ah, tentar tentamos.. mas ela começou a passar mal, invocou com a cor da cueca que eu tava usando e que tava dando enjoo nela..
- Puta que pariu...
- É, Chipanza, o negócio fica sério quando rola uma gravidez.. Teodoro!!! Traz vodca!!
- Vai misturar, Cleiton?
- Vou dar uma afogada hoje.. pilequinho, sabe?
- E a Patty não liga?
- Nessas horas já deve ta dormindo abraçada com aquele travesseiro de grávida.. Negócio estranho pra cacete.. Já viu um?
- Vi não.. nem sabia que existia isso.
- Pois é.. parece uma linguiça gigante..
- Vibra?
- Não fode, Chipanza..
- Foi mal.. piadinha!
- Sei...
- Mas e aí, como que rola com a casa, o trabalho?
- Filho chora e mãe não vê, Chipanza.. o negócio ficou sério..
- Puta merda.. Mas tava na hora de ter filho já? Dois anos de namoro..
- Ah, Patty pediu, era meu ponto fraco..
- Como é que é isso aí??
- Ah.. naquela hora.. a gente tava numa noite meio selvagem, sabe.. óleo de massagem, incenso, hidromassagem.. a gente passou do ponto e quando eu tava lá, no meio da posição de ataque do tigre azul (coisa de kama-sutra), ela me sussurrou no ouvido: "Faz um filho em mim...". Pronto.. aquilo lá mexeu comigo e com o meu brother aqui.. e do jeito que foi pegou. Assim, de primeira.
- Caceta, hein, Cleiton.. cê é tanga frouxa mesmo.. mulher pede e você dá assim, um filho?! UM FILHO!!
- Calma, Chips.. eu sei da responsa e tal.. mas meu negócio é com mulher grávida.
- Ai meu Deus..
- Ah, esquece isso.. e você? Como vai a vida de solteiro??
- Bom, dou um bote aqui, outro ali.. saio na caça mas finjo que sou tímido. BLAU!
- Puta susto, Chipanza, cacete! Que que é BLAU, porra???
- Porra, Cleitão! Blau, mermão.. vou lá e chapisco o território.. as meninas ficam doidinhas.. perfume de feromônio. Parece estar funcionando. E você ta casado, nem dá um blau fora do penico mais..!
- Nem me fala.. Com essa história da Patty enjoar com tudo.. Meu PC ta parecendo um puteiro virtual..
- Teodoro! A saideira.. aquela.. trincando!!
- Puteiro virtual? Conta mais..
- Ah, esses sites merdinhas que a gente perde tempo de vez em quando, sabe? Das putonas?
- Sei..
- Então.. só que agora visito todo dia.. to até pagando carteirinha vip pra ver em HD e enquadramento especial..
- Como é?
- Enquadramento, porra.. da ação e tal..
- Ah, tendeu..
- Bom, acho que vou pedir a conta.. a Patty logo vai ligar pedindo pra eu levar barra de cereal e pasta de dente.. a última moda dela. Come tudo junto, numa tigela enorme...
- Cacete.. que bosta..
- Pois é.. Fecha a conta, Teodoro!!!
- Mas, vem cá, aquela história da hemorroida.. como que é mesmo?
- Ah, cê ta tirando com a minha paciência, né! Falta de respeito, porra..
- Só curiosidade.. é que eu ando sentindo umas queimações.. bom.. queria umas informações.
- Ah não, Chips.. a essa hora não dá..
- Tendeu.. Você já teve?
- Tive.. operei.
- Doeu?
- Anestesia, porra.. sente nada não..
- Ah.. É que..
- Ficamos assim?
- Bom, acho que dá pro gasto.
- A Patty só não pode desconfiar..
- Deixa comigo essa parte.. e vê se cuida desse.. desse seu problema aí..
- Quando resolver te aviso.. desculpa não rolar nada hoje..
- É nóis..
- Aquele abraço.. apertado..
- Porra, Chips, pára com essa merda aqui na frente de todo mundo. Aperto de mão e cada um pro seu lado. Quer me comprometer???
- Ah.. é a saudade.. mas tudo bem, meia noite na webcam.
- Fechou.

Teodoro sabe de cada coisa...




terça-feira, 16 de outubro de 2012

Confissão

Estava um tempo "chove-não-molha" do lado de fora da igreja. Padre Everaldo comia osteas dentro do confessionário. Sem ninguém saber, claro. Ou faziam vista grossa, já que ele era o querido das confissões.
Além de osteas, molho de pimenta árabe. Só pra acompanhar.

Marco Antônio chegou esbaforido na igreja já enroscando a jaqueta na maçaneta da porta. Everaldo imaginou, pelo barulho e silhueta, que era ele. Os pelos do braço arrepiaram, pigarreou e limpou os dentes, embora ninguém pudesse vê-los.

Marco não confessava havia dois anos. Virou ateu por esse período, pouco antes de ver sua sogra morrer engasgada com bolinho-de-arroz. Estavam sozinhos na casa dele. A mulher jamais o perdoou, achava que tinha realmente matado a velha. Pediu divórcio. Marco passou a beber. Nunca mais fritou bolinhos-de-arroz, sua especialidade na época.

Abriu a porta do confessionário, sentou-se, ainda molhado.
- Padre Everaldo?!
- Sim, meu filho, Deus o abençoe. Que mandas?
- Pô, Aldo (era assim que o chamava antes de virar ateu), to com uns pepinos aí.. acho que pequei.
- Me explica melhor, Tonho..
- Sabe o que foi, Aldo.. desde que vi minha sogra morrer engasgada com o bolinho-de-arroz, uma especialidade minha na cozinha, diga-se de passagem, o trauma foi forte. Minha vida mudou e nem mais em Deus quis confiar meus problemas...
- O demônio aproveitou para se apossar, meu filho, ele chega nessas horas.. continue.
- Então, o bolinho demoníaco entrou em minha vida dessa forma traiçoeira. Depois que a Celina me abandonou achando que eu matei a velha, comecei a ter sonhos terríveis!!
- Hun, fale mais, meu filho..
- Sonhava com a minha sogra correndo atrás de mim, espumando pela boca e arremessando bolinhos-de-arroz, atrás dela vinha a Celina com a cruz e atrás da cruz, o Beraldo.
- Quem?!
- Beraldo, Aldo, o cozinheiro que me passou a receita dos bolinhos e que, mais tarde, descobri que a Celina caía de boca não só nos pratos que ele fazia.
- Santo Deus..
- Pois é.. E tem coisa pior ainda. Fiquei carente, sabe como é, um ano inteirinho sozinho...
- Pecou aí?
- Calma, ainda não. Fui atrás de uma profissional, sabe.. do sexo.
- Puta, Tonho?!
- Não! Profissional do sexo, Aldo! Olha o modo de falar...
- Sei.. e o que aconteceu depois disso?!
- Bom, no começo eu ia até o motel com ela e conversávamos. Muito. Essas profissionais são umas belas psicólogas às vezes. Colocam a gente lá em cima, sabe..
- Não..
- Bom, enfim, conversamos muito. Umas doze idas de conversa no motel. Até que começou a rolar uma confiança e me deixei levar.
- Mas pagou por sexo?
- É.. uma hora eu não aguentei, Aldo, a moça lá peladinha da silva já sem paciência com as minhas conversas de carência e decepção amorosa.. Acabou me atacando. A moça sabia fazer o lance todo e eu achei que fosse morrer. Mas foram passando os encontros, a gente foi se afinando..
- Afinando?
- Criando afinidade, Aldo. Os gostos batiam.. sabe como é, né..
- Não.
- Porra, é modo de dizer!!!
- Ah sim, claro, continue..
- Até que ela me chamou para o flat dela... conhecer. Ela estava de mudança e queria que eu ajudasse na decoração. Fui. No bolso levei um azulzinho pra garantir. Idade, né, Aldo.. você nem sempre pode contar com aquela amizade firme de antes com o Tinoco.
- Tinoco?!
- Bom, esquece essa parte. Fui pra casa da moça. Estela era o nome dela. O artístico era Space Girl.
- Ave Maria..
- Pois foi exatamente isso! Rezei, como há muito tempo não fazia, uma Ave Maria! Só pra garantir.. pra quem já havia voltado a crer, tinha noção de que estava pecando.
- Subi no flat. Ela estava limpando as coisas.. de calcinha! Só de calcinha, Aldo.. Aí é pra quebrar a banca, né? Pedi um copo d'água.
- Pra tomar o azulzinho?
- Isso.
- Tomei. Escondido, claro.
- Pelas minhas contas, tu vai ter que rezar muito pra enfrentar o demônio..
- Calma, Aldo, tem mais. A gente acabou se pegando ali mesmo, na sala, rolando no tapete persa dela de um lado para o outro na nave da Space Girl. Aí já viu. Bateu a fome.
- Mais?
- Não, Aldo, fome de comida mesmo, porra!
- Ah sim, claro.. continue..
- Ela sugeriu que eu fosse tomar um banho que ela ia cozinhar algo pra nós dois. Ela também estava caidinha por mim, nem cobrava havia uns três meses. Mas do chuveiro comecei a sentir um cheiro bem familiar..
- De quê?
- Bolinho-de-arroz. Claro que pensei que fosse um lapso da minha síndrome do pânico atacando. Mas quando eu saí do chuveiro, padre.. de toalha mesmo, vi os benditos fritinhos em cima da mesa. Comecei a suar frio e quando Estela me viu, foi logo me socorrer. Mas não quis contar o que estava acontecendo e ela disse que era fome. Nos sentamos à mesa..
- Ai meu Deus..
- Até aí tudo bem. O problema era fazer desfeita com a merda dos bolinhos.. comi um. Tudo bem. Até que.. vai vendo a maldição, Aldo: a Estela começou a tossir e não parava mais!! Tossia e esbugalhava os olhinhos, bebia vinho mas não adiantava nada. Fiquei louco. Comecei a bater nas costas dela, sacudir, balançar a cabeça.. acho que me esforcei tanto que..
- Que...?
- Acho que matei a puta, seu Aldo.
- Ah, agora é puta?
- Ah sim, me desculpa, Estela.
- Puta merda, hein, Tonho?! Desse jeito a coisa fica séria.. E a moça? O que que você fez?
- Saí correndo, Aldo. Como uma moça, na ponta do pé. Pulei o muro da garagem pro porteiro não me ver. Pequei, padre... muito!
- É... mas foi logo querer casar com puta, Tonho! Pera aí, deixa eu calcular a penitência.. Tem calculadora científica aí?
- Não fode, Aldo.. pô, e a amizade?
- Está crendo novamente?
- Sim!
- Na hora do aperto..
- Aldo, vai, me diz o que eu tenho que fazer logo pra Deus me perdoar. Tenho um medo dos infernos do demônio querer me puxar pra baixo quando eu morrer.. até choro de pensar.
- Anota aí. Vinte vezes o pai-nosso, vinte vezes ave-maria, ajoelhado no milho. E uma doação de ostea para a igreja.
- Ostea??
- Isso. Ah, e molho de pimenta árabe. Sabe como é, o bispo vem fazer visita no fim do mês e ele adora um molhinho desses...
- Pô, Aldo.. acha que assim Deus vai me perdoar??
- Olha.. veja bem, Tonho. O pecado foi forte, né?
- Eu sei, padre.. dá uma força aí porque eu já to sentindo o calor do inferno aqui na sola do pé!!
- Bom, vou ver o que eu posso fazer.. e vê se não me apronta mais com puta hein. Quer dizer, com ninguém!
- Ta bom, Aldo.. vou fazer o que me pediu.. lá no milho.

Foi saindo do confessionário em direção a saída. Quando Everaldo lhe chama.

-Tonho! As osteas, as osteas!!
- Deixa comigo!



quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Carne

O cheiro de gente morta já não fazia tanta diferença na sua vida. Se tivesse ou não, tanto faz.
Depois de se tornar um investigador renomado e aprovado pelos escalões da alta classe policial seu cotidiano mudou completamente. Mas acabou se acostumando com o tempo, com o dinheiro, com a propina.

Não dormia quando, no começo, se envolvia em omissão de casos com resoluções óbvias e comprovadas até por não-peritos. Mas dizem que o tempo é o remédio para todas as dores. E devia ser.
Às vezes, de supetão, levantava da cama molhado de suor e com a imagem das pessoas que havia visto em condições nada humanas. Casos que tinham conclusão omissa, conforme mandam as disputas por poder.

Entre umas poucas saídas e outras, Eduardo tinha uma amiga que se passava por sua namorada para participarem de casas de swing. Tinha de ter alguma coisa pra distrair daquela vida alternativa que escolheu para seu próprio conforto.

Basicamente tinha atração por mulheres que mandavam nele. Algo que tinha de fingir fazer o tempo todo em sua vida, durante o expediente. Mas era nos fins de semana que deixava-se mandar por outra pessoa que não a sua própria sombra, nem seu superior. Deleitava-se nos contos, nas contas, nas formas e nos dentes das mulheres mascaradas que rondavam por seu espaço. Tinha uma tara específica por bocas e dentes femininos, talvez se encaixasse num quadro de odaxelagnia ou algo do gênero. Preferia lábios médios aos enormes e dentes brancos aos amarelados.

Por entender mais do que gostaria sobre o sistema político e sua relação com o tráfico, omissão de informações, desvio de verbas e mortes compradas, seu estômago desenvolvera uma certa gastrite emocional. Tinha náuseas de pensar em algum desses esquemas. Muitas vezes seu trabalho era dar um falso parecer sobre a morte do cidadão, sentia-se como um açougueiro negligente. A ordem vinda de cima garantia seu gordo salário em troca de uma ficha suja de sangue, contendo mentiras das quais seus ansiolíticos davam conta de amenizar. Omeprazol e antiácidos sempre nos bolsos.

Ao esteriótipo externo, cidadão normal, bem vestido. As mulheres costumam acreditar em seu lado gentil e generoso. E não estão erradas totalmente. Por esse motivo consegue umas mordidas abusadas aqui e ali, mas não fixa-se a ninguém por medo de compartilhar suas visões mais obscuras ou encontrar alguém que o traga novamente o conforto de um sorriso, de um abraço sincero.

Sua última aquisição não foi o carro do ano, nem uma estradeira. Mas sim um abajur de canto, que lembrava muito os fins de tarde com seu pai, quando aprendera a ler. Filho único de pais falecidos, tudo o que remetia a uma anestésica nostalgia ele comprava, fosse o preço que cobrassem. De um lado do quarto, o piano lembrava sua mãe. Do outro, a poltrona que pertencia a seu pai trazia a calmaria depois de dias difíceis. Debaixo da cama, sua 9mm contrastava com o personagem que tentava ocultar do seu pequeno círculo de amizades.

Não é preciso muito para que afaste-se de alguém. Nunca se sabe com tipo de carne está lidando...


* Fragmento de um personagem que criei e que estará em algum romance em breve.. espero que gostem).


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Acabar

Segurando a mão direita de sua esposa, com sua velha mão esquerda, silenciava entre a gota de lágrima que caía sobre o tecido esverdeado de sua calça e outra que caíra, há pouco, sobre seus sapatos marrons.
A dor de uma lembrança que ardia em segundos, repaginando flashes de uma história inteira. Há mais de cinquenta anos transformaram sorrisos em ações, pensamentos em atos e se divertiram por tantos episódios que recheariam um livro imenso, maior que a Bíblia, melhor do que Shakespeare.

Sua dor era motivo suficiente pra cair nas graças das religiões escritas por homens, no pensamento obscuro do controle que tinha sobre sua vida, no que se arrepende de não ter feito.
Muito pouco, talvez. Poderia contar no dedo o que deixaram de fazer para tornar feliz o outro lado, mas isso pouco importava agora, que sua mão esfriava a cada minuto mais e o sol já não inundava o quarto do hospital com tanto fervor.

Nem nos momentos de maior solidão poderia descrever aquela imagem. Queria mesmo era acreditar que não via nada, não sentia, não existia.
Seus olhos pesados de alguém que tanto admirou a paisagem ao seu redor, eram agora acinzentados por nuvens de dúvidas, nuvens de abandono.

Por todos estes anos foram calço, apoio, degrau e pedra na vida um do outro. Todos os momentos bons haviam enobrecido os ruins, que dissolviam-se como areia neste momento tão particular. Um momento para decidir se morte é o partir, o pesar, a verdade.
Ou se é a passagem, o renascimento, a ilusão...

Por momento algum, desde que ficara doente, largou suas mãos. Antes delicadas por uma juventude macia e agora calejada pelas marcas do tato. Mas eram mãos que antes acalentavam, seguravam com a mesma vontade, as suas. E agora repousavam suavemente por entre seus dedos marcados pelo medo.

O medo da solidão, da negação. O medo de se ver só, sendo que por toda a vida havia depositado metade de tudo nas outras mãos. Eram quatro, eram dois, eram um.

Se o sentimento para descrever o abandono fosse arrependimento, certamente ninguém ficaria só.
Esse foi o risco que aceitou correr por amor. Essa foi a maneira que conseguiu apoiar e depositar suas esperanças que iam além da solidão.
Essa foi a escolha que talvez nem mesmo fosse sua.

Sabia que era o momento de chamar os médicos, fazer algumas ligações.. mas o efeito aniquilador do medo no amanhã o colocavam praticamente como concreto no chão. Deixaria as mãos, agora frias, para abrir a porta e encontrar o mundo visto de um lado só. Faria uma nova conta onde, um mais um, seria igual a um novamente.

Toda nebulosidade do momento extinguia seu próprio eu.
Todo momento negligenciava sua vontade de se mover... Mas era necessário.
Abriu as portas do mundo cinza e caminhou lentamente. A discrição mais afável para o que sentia era um tornado carregando seu coração ao centro e desintegrando pouco a pouco, jogando seus pedaços no ar.

Mas foi. Tinha que ir. Ali, no jardim do hospital...
E do sentimento se fez dúvida, quando o coração parou de bater e se encontraram, ou talvez não.
Do outro lado, ou em lugar nenhum.
Uma mesma história, ou nunca mais.



terça-feira, 2 de outubro de 2012

Josias

O último trago no último cigarro do dia. Mentolado. Deviam proibir essas merdas..
Josias tinha uma certa afeição por formas claras e hipocondria da vida. O medo lhe tomava todas as entranhas e fantasias, assim como a obsessão pela masturbação.
De longe, um homem normal, mas quieto. Cara de quem tem muitos segredos guardados.
Bom, ter, tinha. Mas ninguém sabia.

Depois de ter virado corno, era  fato que sua feição dava dó ao homem mais ingênuo e afeminado do mundo. Mas até que a galhada lhe servia bem.
Descobriu assim: ao chegar em casa do trabalho notou que sua mulher, como havia acontecendo frequentemente, ainda não havia chegado. Conferiu a secretária eletrônica (sim, estamos no século vinte e um, mas Josias ainda não), deu um tapa em sua bituca de baseado e ligou o computador.
Por uma distração estúpida, ou seria proposital, de sua mulher, lá  estava a caixa de e-mails aberta, logada, suja e sacana. Palavras descreviam noites ininterruptas de uma paixão calorosa que, pelas contas de Josias, estava fazendo aniversário de oito meses.

Oito meses. Agora imagine só qual é o número que Josias nem pode ver pela frente...
Descobriu assim, pronto. Esperou sua mulher chegar para lhe fazer as malas.
Mas esqueceu que o mal-sucedido era ele e o apartamento, dela.
Despejado e envergonhado, Josias aceitou a situação e perguntou se poderia ficar por mais um tempo até se estabilizar. Júlia deixou. Mas agora levava o amante para seu quarto.
Josias viajava imerso num sentimento tragicômico sem explicação. Às vezes ouvia os gemidos do quarto ao lado. Ora ouvia somente uma longa conversa, o que nunca havia feito com Júlia.

De tanto fazer terapia, o próprio psicólogo ligava pra pedir conselhos e avisar que havia chegado erva da sua estufa particular.
Internamente havia um buraco em Josias. Mas ninguém perguntava, ninguém sabia.
Era mais um uniformizado na empresa que chegava cedo no setor, saía tarde. Não se divertia no coletivo.
Por essas e outras razões começou a ter certo gosto pela morte.
O problema é que era a morte dos outros. Ou melhor, das outras.

Josias conseguiu seu primeiro trinta-e-oito com o psicólogo, que substituiu algumas das sessões de terapia por aulas de tiro. Ficou tão bom no assunto que logo estava treinando com alvos móveis, caçando pássaros e coelhos.
Conservou todo o seu desejo por suspense pra usar depois.
E foi assim, depois de levar sua primeira vítima ao motel mais próximo, fizeram sexo, conversaram, ela lhe deu atenção e ele a pediu que lhe chamasse de corno.
Claro que ela recusou, mas a insistência de Josias a fez dizer. Com um estampido abafado se afastou, incrédulo e sem reação. Pintou o número oito no abdômen da vítima com um pincel atômico e fez um smile em baixo, pra descontrair o ambiente.

Degustava uma sensação de medo, dor, alívio, sinceridade... quem era Josias? Se perguntou por mais trinta minutos até que chamou ao telefone, a carta de vinhos. Pediu o mais caro e deliciou-se. Olhava a mórbida cena.
Bizarra e grotesca.
Mas de certa forma havia achado o que procurava há tanto tempo.
De corno para doido varrido psicopata... ou não seria um doido?
Uma já havia sido...restavam sete. Mas por que raios tanto trauma com a galhada?!

Assim Josias começou o seu novo "trabalho". Sempre de formas diferentes.
Até hoje não sabem que é o seu rosto bobo e seu corpo franzino a última visão das vítimas.
E nem vão desconfiar.
Mas este, leitor, é segredo nosso.
Josias nem faz ideia que eu contei seu maior segredo a vocês.

E fim.



terça-feira, 25 de setembro de 2012

Despido

O tempo passa devagar, pareço caminhar descalço sobre uma rocha cheia de limo
Onde não vejo o fim, não entendo o fim
Entre os vãos que eu encontro e acho que consigo pular..
Aparecem pontas afiadas que me desafiam a pisar

Me lembro de poucas histórias pra contar
De muitas pra sonhar
Porque o anseio é o pensamento no amanhã
E quando se vive o presente a dor é menos branda

Meu entusiasmo é ouvir as histórias que eu não vivi
É sentir aromas que pensava não existirem
Sabores que sobressaem aos dissabores dos erros
Jogando fora o fel que você me presenteia

Se, quando pensares mal de mim, delicia-se,
Lembre-se de que posso também me dar ao luxo de saborear-te
Sobre a mesa com a maçã posta na boca
Pra que não saia mais nenhuma fala estúpida por entre os dentes e língua

E não se esqueça que amanhã é um outro presente
Já não será mais futuro, será o agora
Porque o agora que escrevo, nunca mais será o mesmo



* Voltando, devagar e sempre, a escrever... 
Obrigado aos que acompanham.. Luz pra nós.

Grande abraço



quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Samba pra rua



Eu quis ver você passar
Fui pra perto da rua
Teu carnaval era tão solto
Que logo me encantei

Nas ruas todos falam dela
Os bordados, as fitas, os dons
Não precisa luz de passarela
Sampa cinza e tijolo marrom

Ela sabe que eu quero
Fica difícil, assim, disfarçar
Janela, flanela, festa de rua
Sorriso e samba no tom, no tom...

Percorro pra perto do mar
Areia dissolve em centenas de grãos
Faço abraço de braços e mãos
Sugiro, te peço, te sinto ou não


domingo, 19 de agosto de 2012

Personagem

Por certo, seu gosto refinado fazia com que aromas dos mais porcos tornassem perfume dos mais suaves quando bem entendia. Uma estranha obsessão por ler as coisas de trás pra frente e por números múltiplos de nove o mantinham na linha da calma durante tempo integral.

Fazia-se entender em público perfeitamente, quando expressava-se de forma adequada às normas da sociedade. Aliás, seu discurso era impecável como o de um candidato a presidência. Talvez pelo fato de dizer coisas ordenadamente, porém, não necessariamente fazendo sentido algum. Convencia.

Atraíam-no loiras, às vezes morenas. Menos as ruivas e tentava fazer-se entender o motivo dessa complicação ao chegar no prostíbulo mais próximo. Vez ou outra a lembrança em imagem de uma batina com melenas ruivas se apossava de seus pensamentos. O toque enjoativo daquele padre em seu corpo frágil e nu, seu corpo de criança.. Talvez as informações cruzassem neste ponto. Ainda assim, mantinha-se hétero. Mas não frequentava a igreja desde que atingira a maioridade.

Seus costumes eram preferencialmente escuros, revezando entre tons de cinza, preto e marrom. Hábitos noturnos. Digestão lenta e imprecisa. Frequentemente encontrava-se com dores abdominais, fruto de um recorte mais preciso de seu talento para a cozinha. Especialmente comidas cheias de gordura e cremes.

No seu dia-a-dia fazia de seus horários de trabalho, um meio fácil e divertido de ganhar um dinheiro derivado de figuras públicas. Figuras escrotas.

Trabalhava nos bastidores de um esquema simples e corrompido. Pessoas ligavam-se obrigatoriamente a ele, vez ou outra, por ser parte essencial em uma equipe de chantagistas profissionais. Mas preferia trabalhar sozinho, assim como divertia-se nas horas vagas.

Quando menos se espera, você cruza com ele em um corredor movimentado do shopping, mais precisamente em frente a vitrine de batedeiras elétricas, mesmo sem saber que colecionava diversos modelos e cores destas peças. Lembrava sua mãe, confeiteira de primeira mão.

Quando calado, cidadão comum. Quando falante, persuasivo em seus versos e referências poéticas, muitas das quais inventava as frases e autores. Mas você não ousaria duvidar de sua precisão com as entonações de voz que oscilavam milimetricamente por entre a língua e dentes amarelados pelo fumo de charutos.

E pode, ainda, encontrá-lo.
Se tiver a sorte de não ser por motivos profissionais, deleite-se com um discurso redundante e seus gestos desengonçados. Ria por dentro, mas não ouse demonstrar seu riso por fora. Ele cozinha bem.. e nunca se soube a procedência exata da carne do seu estrogonofe.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Mudança de postura

Apesar de meu antigo gosto pela luta e direito do voto, direito de ir e vir e essas coisas que a gente se sente bem ao compartilhar nas redes sociais mas que nada faz valer na vida REAL, me sinto livre hoje.
Vou lhes contar porque.

Andei conversando com pessoas que têm, no mínimo, o dobro da minha idade, e constatei uma situação política similar desde os tempos passados. O que eu quero dizer com isso?
Que não importa quem você coloque no poder, quem comande o país ou tentar usar o "voto consciente". O Brasil vai continuar sendo dominado pelos poucos que chegaram no poder absoluto na ditadura disfarçada, diga-se Sarney, Dirceu, Lula..

Você compartilha uma mensagem anti-corrupção nas mídias sociais (assim como eu mesmo já compartilhei algumas) e sente-se mais aliviado por alguns cliques. Digo a você algo que decepciona: seus cliques e compartilhamentos, assim como os meus, não adiantam NADA.

O bairro onde eu moro está um LIXO com tantas placas de novas caras, novos números e novas promessas pra essa eleição. Sem contar os trios elétricos, luzes e adesivos que enfiam na nossa cara quando menos se espera.

Esse sistema político está diretamente relacionado com o PODER. Basta colocar o poder na mão de um revolucionário qualquer, dar dinheiro, benefícios, mulher gostosa, carro e um sítio. O que ele vai virar? Mais um lunático sócio do Brasil.

Sem generalizações, tem políticos sérios... Sério.

Mas o grande sistema político que COMANDA o rumo do país NÃO MUDARÁ, independente do seu voto, dos seus cliques ou das suas passeatas. Não temos acesso ao que realmente implicaria em uma mudança realista das coisas. E nunca teremos.

Eleja o presidente X, Y, Z... e mensalões continuarão acontecendo. Mensalão, aliás, está em um julgamento fora da realidade e posso garantir que não dará em nada. Bons advogados, bons contatos, grandes atuações circenses para o nosso povo assistir feliz à novela da emissora endeusada por nós mesmos.

Não quero discursar como um político pra falar justamente o contrário.
Então fico por aqui... Se você leu, obrigado.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Gula

A brecha, o forro, a fenda
Esperam pela chegada da brasa, do couro
que completa, que inunda e se porta intrigante
O mito, a cultura, o sexo

Cura...

A chance, imaginação, os olhos
Comer com os olhos antes de encostar a língua
Espessa forma de separação que existe
entre o que se vê e o que se quer

Gula...

As mentes, as pintas, as marcas
Compõem um conjunto complexo, a chave
O cadeado, a porta, a fechadura
Curvas que entram e saem do campo de visão

Rosado...

O sim, o não, o talvez
Aprendem a conviver de dentro, de fora
Fora e dentro..
Continuidade óbvia, como tudo na vida
faz um movimento

Instintivo...

A peça, o encaixe, a completude
O emaranhado quebra-cabeças da imaginação
Você esconde, expõe, se mostra
Como é e como queria ser

Desejo...

O que te impede?



Questionar é seu direito

Guilhotina, os fios de sol que entram de leve pela janela contrastam com as dores da vida real. Se bem que entenderia facilmente se o sol não fosse real, de tão intenso e vívido..
O excesso de esperança que vejo nas pessoas torna-se alvo fácil para os aproveitadores de "Deus", que circulam ao nosso lado nas ruas, dizendo-se cheios de virtudes e enviados por "Ele".
Paro e penso: quem é este ser humano que tem a audácia de se julgar superior e, pior ainda, o ATREVIMENTO de dizer-se enviado dos céus? E que história é essa de céu?

Céu e inferno, bem e mal.. todas as figurações criadas para que pudéssemos, se não entender, nos consolar sobre os acontecimentos bons ou ruins que nos acontecem diariamente. Me intriga o fato do comportamento humano estar ligado ao medo de ir para um lugar ou outro depois da sua morte. Uns deixam-se levar na maré destas figurações, muitas vezes absurdas. Outros jogam a culpa nos seus deuses, seus demônios e santos depois de não "serem atendidos" por eles.

Enquanto isso, os palácios ostentam seus tamanhos, seus dourados, suas peças intocáveis de ouro e mármore. É tão difícil ser simples? Não digo ser humilde, chorar e viver na necessidade por fé em algo.
Nem passar sacrifícios para poder ir para o tão aclamado "céu". Mas ser simples no sentido de passar recados verdadeiros, ajudar na construção de uma cidadania verdadeiramente imponente à nação que chora por corrupção.

E ao invés disso, muitos dos que se dizem enviados por seu deus, fazem parte do mesmo maço sujo de cigarro barato onde estão os corruptos. Ta aí uma coisa que eu nunca entendi e não pretendo: excesso de poder. Por que será que tantos perdem a noção do limite quando tem o poder nas mãos? Como essas pessoas dormem de noite, se eu que, por muito menos, já passo a noite em claro?

Todo o maquinário das intrigas políticas e religiosas usam VOCÊ pra justificar seus atos. Ora tiram o seu dinheiro, ora tiram o seu direito de pensar da maneira mais prudente. Me entristece pais que deixam de colocar comida na mesa para entregar ao dízimo, já que ele garante sua paz com Deus. Assim como me entristece os caras lá no Senado que nos roubam descaradamente e continuamos votando, elegendo, sorrindo... Inibem o seu pensar, tiram da educação e colocam o medo divino em suas mentes. Pronto, estão com você nas mãos

Me perdoe se você não concorda. Aliás, não quero o seu perdão, quero o seu pensar. Se você leu até aqui e, espero, entendeu o recado, plantei uma semente do questionamento na sua mente. Pra mim, satisfaz.

Só haverá revolução verdadeira quando cada indivíduo entender que CONHECIMENTO pode ser auto-didata e não depender do que passa nas televisões, nos encontros religiosos...

Sou defensor do direito de questionar.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Baile das máscaras

Foi convidado para um baile de máscaras. Nunca havia ido e, pra falar a verdade, achava algo um tanto ultrapassado pra alguém do século XXI. Mas como o convite fora feito pela bela moça da repartição ao lado, tornou-se, logo, irrecusável.
Entrou em sites para encontrar máscaras diferentes, queria impressionar. Acabou achando em uma loja virtual de sadomasoquismo.. "ninguém vai saber a origem disso.."
Sua máscara era preta e dourada com detalhes em fios negros e metais.

Chegado o dia de estrear a máscara. Sado, tosca, jogaria fora assim que o baile acabasse.. pensou assim.
O endereço era uma antiga rua da cidade onde mansões com janelas fora de moda e portões enormes cercavam as verdadeiras prisões particulares dos novos ricos que achavam o máximo morar ali e manter tradições caretas.
Encontrou o número ostentado no muro de maria-sem-vergonha e parou o carro. Identificou-se, entrada liberada.

Pensava na bela moça da outra repartição.. o que os dividiam era aquela baia insuportável de onde pessoas cheias de problemas e manias infiltravam seus olhos nos computadores em tempo integral. A maioria já estava careca, se não obesos.
Obesos, carecas e descontentes. Era fácil distinguir a beleza naquele inferno empresarial. Era aquela moça que inundava os olhos e, diga-se de passagem, único desvio para os pares por detrás dos óculos quadrados em armação clássica.

Perto da porta que se aproximava um daqueles caras brutos, provavelmente polícia fazendo bico de segurança.. Ultrapassou e encontrou o oposto do que imaginava em sua mente enquadrada pela repartição.
A luz era baixa, quando não vermelha em alguns pontos.. as vozes misturavam risos de mulher, cheiros dos mais variados, ora de charutos de chocolate, ora de um perfume ligeiramente doce.. foi aprofundando-se na grande sala que seguia através do som de lounge com jazz.. coisa fina.

Se não fosse pra morrer naquela hora, não morreria mais. Pensou.
Ao se deparar com pessoas usando máscaras... tão somente máscaras... se achou totalmente fora do contexto com seu Armani bem passado e sapatos lustrados.
Logo virou-se, pensou secretamente ter errado de festa apesar das conferências na recepção.. quando foi agarrado suavemente no braço esquerdo e escutou uma voz em seu ouvido. A voz que conhecia bem..

"Aonde você pensa que vai?"
Congelou-se por inteiro, nem sabia se o coração estava batendo. Talvez não por alguns segundos ou horas.. incalculável. Olhou um pouco abaixo e percebeu a tatuagem fina e delicada no pulso da mulher.. era a bela da repartição ao lado.
A não ser pelo fato de que não teve tempo de olhar para a máscara antes de fitar os seios decorados com pequenos brilhantes em forma circular. Estava como todos os outros. Nua.

Ela ria dele, que queria ir mas não conseguia se mover. Há quanto tempo não via um par de seios assim, tão próximos.. e tão mais bonitos do que os dos sites que costumava visitar..
"Vamos, você tem que ficar mais à vontade!"
O puxou para próximo do bar. Pôde ver mais do que seios, pode ver contatos discretos, cantos que gemiam próximos à escuridão, risos que satisfaziam-se mutuamente..
Na primeira dose de uísque, que não bebia há tempos, pode reparar com maior facilidade nos detalhes e nas curvas que habitavam o local. A bela moça que o acompanhava percebia e deliciava-se com a situação, apoiando-se sempre nele.

Baile das máscaras... que belo evento, pensou..
Aos poucos foi percebendo os motivos do evento e o mais interessante é que a moça da repartição parecia esperar por ele, já que não saía de perto e parecia não conhecer muitas pessoas.
A conversa foi se abrindo e o fato de estar com uma máscara o fazia sentir-se forte, inabalável.
Foram umas quatro ou cinco doses até admitir que as intenções dela poderiam ser muito mais do que segundas ou terceiras..

De mãos dadas, as dele já não suavam mais, caminharam por entre os casais, os solitários e os grupos. Ouviram as falas, os risos, os ritos.. Sofás confortáveis como mandava o figurino.
Encontraram um canto apropriado, mas não necessariamente só. Percebeu que sua escolha era insignificante para ela, que queria muito mais... E logo viu que não só ela queria muito mais.
Rompia as barreiras dos mitos que guardava nas revistas e nos vídeos baixados da internet.. sentia o verdadeiro calor que era contraposto com o gelado das algemas que se soltavam.
Amarras não haviam, mulheres sim. Mas quem eram? Não importava, as máscaras fariam com que nem ele mesmo se identificasse.. e assim a noite fluiu como nunca antes imaginava.. Ele não era o cara da repartição.

Na segunda-feira era um outro homem. Talvez mais confiante, talvez mais real..
Chegou ao trabalho não mais com o seu Armani alinhado milimetricamente, cabelo levemente bagunçado.. passeava pelas repartições observando sobre-pesos e praças, aficionados em suas telas finas e coloridas.. seus olhos pararam sobre a moça da repartição ao lado, que digitava comportadamente em sua mesa.

Ela o olhou, piscou de um olho só. Voltou a digitar.
Ele sentou-se, fingiu trabalhar.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Poema das palavras tortas

Quero trazer seu amor em 24hs
Entender porque a beleza é tão superestimada 
A inteligência ignorada, as drogas liberadas
E no fundo, ninguém viu..

Quero pintar suas unhas do jeito que eu não sei
Pra sujar seus dedos de vermelho
Que você vai passar pelo meu corpo
Demasiadamente branco pela falta do sol

Talvez queira também fazer brigadeiro de panela
E jogar pela janela, na cabeça de alguém
Mas logo me lembro que não sei fazer brigadeiro
Entro em desespero e peço pra outrem 

Quero espancar um corrupto com um taco
Depois cantarolar uma música de Jobim
Sentir a brisa batendo no rosto
Acender um cigarro de capim

Quero correr pelado
Mas tenho medo do inverno
Que reduz pela metade
Meu amigo mais fraterno

Quero não saber que a maioria é ignorante
Por uma ganância constante
De outros tantos ladrões disfarçados
Crentes no poder além da vida

Quero, acima de tudo, nada
Pra que possa descansar a mente 
Da vida perturbada



terça-feira, 31 de julho de 2012

Descontentamento

Se ajoelha, sente o peso da bagagem e fica observando como o céu pode ser, ao mesmo tempo lindo e amedrontador. Sente o corte na língua que faz escorrer o sangue daquele que usou o maldizer.
Entristece, logo anima...
A camuflagem da farda da vida acompanha o fardo da morte. Onde carrega toda a bagagem sem saber até onde aquilo vai dar.
Se der, diga-se de passagem.
Quando o caminho é longo, reclamamos. Quando curto demais, reclamamos.
Quando fácil, perde a graça. Quando difícil, perde motivação..
Isso tudo nada mais é que o DESCONTENTAMENTO.

O descontentamento é o que te faz viver. Se todos estivessem em plena felicidade e contentamento não haveria motivo para se refazer, reinventar. As novas ideias sempre surgem daqueles que estão descontentes com alguma coisa e querem melhorar.
E se o riso for mesmo a camuflagem da dor de viver, que seja eterno..

O quanto de tempo levar, o quanto de água cursar o teu caminho... não importa.
Se Deus é o amigo imaginário dos adultos ou o verdadeiro criador, me desculpe, não sei lhe responder.. Nem você, que afirma com tantas certezas e descrições.
Minha vertigem é sentida quando não posso mudar o que me descontenta, sensação nauseante.

Mas o que aprende-se, é que nada depende exclusivamente de você.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Assalto

Parei no posto de gasolina tarde da noite pra colocar etanol... entrego as chaves do carro ao frentista, me desarmo do meu poder do acelerador e encaro a situação numa boa.
A bomba parece trabalhar mais devagar e aproveito o momento pra observar o movimento.
Um caminhão de combustível parado em frente. Um rapaz de capuz e boné próximo ao caminhão apressa o passo de um lado ao outro, parece nervoso...

Seu Joel pensa na sua Pitchula, como costuma chamar a rechonchuda e loira namorada de um mês e pouco.  A vida deles banha-se em sexos mil. Na verdade, Joel pensa em Pitchula nua... enquanto registra mais um valor na bomba de gasolina...

Tudo certo, penso... Acho que o tanque tá quase cheio.

Manolo segue com seu carro um pouco mais a frente para checar o óleo. Mas pera, são quase duas da matina, seu Manolo... Enfim. Desce o Manoel com todo o seu tique. Tem transtorno obsessivo, coitado. Revira os olhos e faz o frentista abrir e fechar o tampo do capô três vezes. E meia. Sim, a última é a mais importante do ritual...

Porra, que demora!

Chegam os funkeiros. Carro rebaixado, som alto, risada alta. Pensam em pegar as menininhas e talvez comê-las até o dia raiar. Isso é o que de fato tentam... tem gosto pra tudo. Uma escarrada pra fora do carro.. que pena que meus vidros não sobem sem a chave no contato.

Vejo o frentista se aproximar.

Tamires aguarda o tanque da sua moto encher. O frio tá do cacete... Só ela sabe a saga de ter dois trabalhos pra sustentar marido folgado que não paga a pensão dos meninos. Dá duro na faxina e atrás do balcão. Sai os filhos dormem, chega, idem...

Pego minha carteira..

O rapaz de boné e capuz inventa de dar uma checada no motor também. Talvez seja a moda fazer revisão na madrugada. Frentista puto, posto cheio.

Separo a grana....

Carro de bacana, como dizem, pára ao meu lado. Desce o magnata. Nariz vermelho, três mulheres no carro bebericando Jack-Cola a granel. Magnata manda completar, coça o saco, tira catota, peida e dá uma volta no carro pro cheiro dissipar. Talvez tenha arrotado também, mas não percebi. Tinha cara de Jonas.

Cara do boné encosta mais no frentista, ficam atrás da bomba e perco a minha visão. Porra, cadê o frentista??? Quero ir embora mas o cara não vem receber...

"Perdeu, perdeu!!!!!"

Só dá tempo de escutar isso, cantada de pneu, três motos a mais. Caos.
Joel só pensa se ainda verá Pitchula.
Manolo começa seu ritual.
Tamires pensa nos filhos.
O cara com cara de Jonas prepara o três-oitão do porta-luvas. Estava macho.
Eu, por minha vez, me cago.

Fração de segundos. Tudo levado. Nada mantido. Ao menos as vidas.

Penso, logo, muito.

Volto à realidade, feliz por ser imaginação...
Seu Joel cobra. Eu pago.
Nem confiro a bomba que não explodiu.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Repartição

Fora da repartição, Marcela, a recepcionista parou de fazer as unhas e atualizar o perfil no Facebook quando avistou um dos clientes que se aproximava. Estava com uma lingerie de renda, estilo fio-dental para que quando saísse do trabalho encontrasse seu namorado e fossem ao motel.

Do lado de dentro da repartição pública seu Anestor fingia trabalhar freneticamente em documentos vazios no word, enquanto jogava paciência e pensava na partida de poker daquela noite, onde comeria a amante para depois falar pra sua esposa que o trabalho atrasou e ela fingir acreditar que realmente funcionário público não tem hora pra sair. Gostava de cutucar o nariz bem fundo e grudar debaixo da cadeira.

Dona Matilde fazia o café. Só observava.. sabia de tudo. Aliás, porque ela mesmo que limpava as cadeiras. Menos e de seu Anestor.

Seu Eloísio também fingia.. Fingia que não era gay. Embora fosse realmente difícil esconder as reboladas ora ou outra com seus "um e noventa e dois" de altura. Nada discreto. Fazia luzes no cabelo e fumava pelas ventas o dia todo. Sempre era hora de sair para fumar e tomar (quase) todo o café que dona Matilde fazia.

Maria Luíza cheirava tudo, coitada. Quando não tinha pó, cheirava fungo dos arquivos que era encaminhada de cuidar. Era pó de sujeira, pó de coca, pó de aspirador que, vez ou outra dona Matilde aspirava. Café não tomava, pois dizia que acelerava seu coração.. Matilde fingia que não sabia do talquinho branco quando conversava com ela. Olhos de esquilo frenético, pronto para sair correndo para qualquer lugar que não fossem aqueles arquivos.

Dona Matilde lavava os copos. Seu Eloísio almoçava pensando no bofe. Dona Matilde sabia.

Anestor saía sempre pra almoçar fora, não gostava muito dos companheiros de repartição. No caminho para o restaurante mais próximo, contabilizava as bundas que conseguia fotografar mentalmente enquanto conversava com sua esposa no celular sobre como iriam pagar o IPTU daquele ano. Dava aquelas olhadas indiscretas mesmo, que sugam as calçoilas mais desprevenidas e desnudam qualquer uma que estivesse apta para o amor.

Marcela estava apaixonada. Fazia de tudo para o seu amor enquanto ele dava duro, literalmente, nas gravações de seus filmes. Dizia ser ator... só não falava de quê, coitada da Marcelinha.. João, o namorado dela gravava filme pornô gay. Talvez seu Eloísio o tenha visto em alguma telinha..

Ah, essas relações interpessoais..

Dona Matilde varria a recepção do departamento enquanto Maria Luíza grampeava alguns documentos. Ora os dedos, quando estava com o pó mágico de esquilo.

Depois do almoço todos voltavam para a repartição, faziam unha, cabelo, barba e bigode e fingiam que a responsabilidade era enorme e que o volume de trabalho requeria um salário maior. Juntavam-se somente quando queriam um aumento, provocariam greve e reivindicariam seus direitos.

Depois trairiam, fingiriam, enganariam, cheirariam e trabalhariam um pouco, porque ninguém é de ferro...

E dona Matilde voltava todos os dias pra casa, duas conduções, pensando na roupa na máquina de lavar que tinha que pendurar, na janta que tinha pra fazer, nos filhos que tinha pra criar e no marido que chegaria bêbado mais uma vez e teria que cuidar.

No dia seguinte estariam todos lá, fingindo que fingiam enganar.
E talvez conseguissem... só não enganavam dona Matilde.
Ah se ela escrevesse um livro...!


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Cadeira de Cabaré

Uma música antiga no rádio a fez lembrar da última vez que tinha se libertado daquelas amarras. Espartilho, cinta-liga, renda firme. Nada como relembrar os tempos no cabaré.. Por um lado escondia, pelo outro sentia orgulho.
Aquelas marcas na pele, as rugas, dobras e calos juntavam-se para impulsionar a cadeira de balanço na varanda do quintal, de onde avistava vários outros como ela, também balançando suas fiéis cadeiras. Não mais as cadeiras de antigamente.. as suas... agora eram cadeiras de madeira que rangiam ao menor dos movimentos.

Esbórnia máxima agora era o momento da integração entre os novos habitantes, aniversariantes e da distribuição de cigarro. Sabia que a cerveja era sem álcool e o vinho era suco de uva integral...
Mas não tirava a alegria daqueles que acreditavam se embebedar e dançavam com suas bengalas ao alto, em pares, sempre ao ritmo da valsa antiga que, provavelmente, ainda lhes soava nos ouvidos. Orelhas grandes.. dizem que estas nunca param de crescer.
Pela escolha da histeria antiga, acabava ali sentada na cadeira de balanço durante o sol matinal que não gostava de compartilhar com muitas pessoas... mas observava sobre o que conversavam.
Tinha faro bom e afiado pra filtrar as histórias de gente antiga como ela. A maioria aumentava muitos pontos nos contos infindáveis sobre boemias e noitadas... só ela realmente sabia como era ser boêmia.


Escritores, intelectuais, médicos, advogados, vagabundos... todos esses tipos passaram por seus seios rijos de amor. Alguns em busca de amor, outros de prazeres, outros tantos de um colo pra chorar.. Sim, nem tudo era farra.
Alguns aqui e ali pagavam a bebida para o bar todo e nestas noites, quando a coisa começava assim, só terminava ao meio-dia da próxima tarde.
Quando a idade chegou, lembra-se bem, ninguém lhe dava créditos pelas escolhas erradas, teoricamente, porém certeiras, quem sabe.. Levaram-na para um asilo "ajeitadinho", como ela mesma costumava chamar.
E percebeu que, independente da marca de colas para dentadura dos velhos, compartilhavam em conjunto a solidão que assolava suas mentes durante a noite. Durante o dia, a partilha da mesa nas refeições e a divisão dos quartos.
Quase que uma prisão domiciliar, pensava. Observava como ainda era possível sorrir, com ou sem dentadura, sem o medo de mostrar as rugas que a vida lhe causou, seja por bem ou mal, ou apenas pelo movimento natural da pele que luta contra a gravidade de Newton.
Assim como lutamos contra muitas coisas durante a vida toda para somente lá na ponta da estrada percebermos que nem tudo valia tanto a pena assim perder seus valiosos minutos.
Mas pronto, mais um segundo e já passou.


Só que parecia que todos ali estavam juntos por um motivo de descoberta. Claro que sem querer. Mas todos queriam descobrir novamente como era viver.. de uma forma bonita.
É como que se o direito virasse obrigação e o mundo lá fora largasse os vícios, as questões banais e se abraçassem dentro do limite em que o andador permitisse o afago.
Já não importava mais se vinha do cabaré, da padaria ou do escritório. Todos compartilhavam marcas da vida, seja o caminho que escolheram..


E a esbórnia antiga tornou-se uma mera fase que não queria esquecer.. mas só lembrar com carinho que a vida passa. Ela tinha feito o que gostava, sem sequer magoar ninguém... "isso valeu..." pensou enquanto o balanço da cadeira rangente largava em seus braços uma dançarina doce de cabaré, com a tranquilidade de uma bailarina a passos leves. E na ponta dos pés, no seu silêncio não mais perturbador, deixou-se levar para os tais julgamentos que se espera encontrar quanto o vento não mais sopra, a cadeira não mais balança....


sexta-feira, 29 de junho de 2012

Exame médico

Dez da matina, chego pra renovar minha CNH no Poupa-Tempo. Na fila conheço uma mulher com o filho, conversamos.. logo entra o senhor da frente no assunto, o na frente do da frente e quase fizemos um pique-nique. Soube onde moravam, o que faziam, quando e o motivo de estarem lá.
Enfim, de uma fila para a outra fui pingando até chegar na hora do exame médico.. sento num banco na frente da placa que direciona as senhas para um corredor estranho com várias salas de onde pessoas saíam com expressões diversas... dez senhas na frente... minha mente vagou por temer o futuro, como seria o exame médico? Por que aquelas pessoas saíam com diferentes expressões?

Numa dessas...

- Bom dia, doutor!
- Bom dia. Renovação?
- Isso!
- Usa óculos, lente, prótese peniana?
- Nenhum dos três...
- Hemorroida, micose, sinusite?
- Não senhor... (já meio que atento para onde estava a saída da sala)
- Já fez exame de toque nesse ano?
- Tenho vinte e poucos, doutor.. tô acabado assim???
- Por prevenção, meu filho. Só renova se fizer.
Dou uma olhada nos dedos do doutor, pequenos e finos... bom, se era o jeito..
- Beleza, vamos lá então, né..
- Ô, Paulão! Paulão!! Vem aqui que é toque de novo.. cacete, cadê o Paulão??
Gelo na espinha.
Chega Paulão, negão três por quatro, dedo grosso e longo.
Saio correndo. Prefiro andar de busão.

Ou quem sabe...

- Bom dia, doutor!
- Pra quem?
- Ahn...
- Me fale as letras da parede.
- A, B, P, S, J, M, R...
- Ta bom, ta bom, também não precisa dizer todas, porra...
- Oi?
- Estado civil?
- Solteiro... mas...
- Tem programa pra hoje a noite?
Corro mais que papal-léguas fugindo do coiote..

Ou então...

- Bom dia, doutor!
- Bom dia, meu filho.. Renovação de CNH?
- Isso!
- Tem algum problema de saúde?
- Não, senhor.
- Tem algum desafeto familiar?
- Às vezes...
- Já passou por decepção amorosa?
- Ah sim, claro..
- Já mijou e saiu do banheiro sem lavar a mão?
- Difícil, né, doutor...
- Quantos dedos tem aqui? (mostra a mão aberta)
- Cinco..
- Cetembruxove?
Saio da sala e mando o doutor pra puta que o pariu...

Até que chamam minha senha, acordo das minhas viagens e caminho para a sala numerada como vinte e quatro. Porra... começou mal...
Entro, faço menção de fechar a porta.. o doutor diz que não era pra fechar, caso eu precisasse sair correndo.
- Oi??
- Brincadeira, garoto..
Ufa.. letrinhas aqui, letrinhas ali, movimentos cômicos..
Só faltou o polichinelo..
Passo batido, renovado, legalizado.
E lá vou eu, dentro da lei...



quarta-feira, 27 de junho de 2012

Quem buliu aí?

Ao mais desavisado a mão boba veio de forma significante por trás do pescoço, vulgo cangote...
Aos pés do anfitrião, sabia satisfazer aquela história toda de impressionar e fazer-se gostar, era ótima nisso e causava desconforto nas amigas que ainda engatinhavam no assunto.
Mas as reuniões casuais estavam cada vez mais frequentes e eles sabiam que aquilo não podia dar em amor, relacionamento e pessoalidades... Estava frio lá fora, lá dentro não possuía aquecedor, mas era impossível a temperatura ser menor do que vinte e oito graus.
Começou em uma brincadeira, quando chamaram para participar de uma rodada de tequila sem compromissos.. talvez um carteado, nada mais. Dali para o salto excêntrico de despir-se em público e realizar-se em lugares estranhos era uma longa caminhada.. mas chegou o dia.
Justo naquele dia em que o mais desavisado bebeu o que não devia, somado ao que não estava satisfeito com a sua vida e seus amores...
Quando menos esperaram, a festa da tequila virou a festa de outras tequilas e temperos.. temperos obscuros, intuitivos e reservados.
Como uma terapia, só que o psicólogo era os hormônios e o desafio. Quando desafia-se alguém, tome sempre cuidado para com quem está lidando.
E dali em diante foi assim.. às quartas geralmente, traziam as garrafas, os filmes, as luzes, os aparatos.. entre uma e outra semana, engravatados, despidos, casuais, ricos, médios, gordos e magros frequentavam a casa de família. Ao menos era de família quando a mesma se encontrava, e não quando somente a filha estava aguardando alguns amigos..
Mas claro que o ser humano é algo tão complexo quanto o seu entendimento sobre si mesmo...
Um dia, o que era erotismo caminhou para o pessoal.. um não gostou do que viu com a mulher de não sei quem, que conhecia a prima de quem buliu... e o caos estabeleceu a confusão.
Uma garrafada na cabeça do homem nu, estilhaços na moça nua, começa uma briga de gente estranhamente nua e desamparada.
A menina pensa em conservar os móveis e gritava, nua, para que parassem com aquilo se não ela chamaria a polícia. Claro que não adiantou. O pau comeu.
Ou melhor, não comeu.
Garrafas, cadeiras, vidro e o policial que ali estava, apalpou a pseudo-calça para pegar o seu três oitão mas  deu-se conta que o mesmo estava no banheiro, junto com sua farda que era devidamente passada por sua mulher todas as manhãs. Pobre mulher...
As mulheres correram para o banheiro. Nenhuma estava com celular por um motivo óbvio de não ter onde guardar.. ou ter, mas enfim..
Inexplicavelmente o silêncio rompe as barreiras dos safadinhos.
O que teria acontecido?

As moças nuas e apreensivas saem do banheiro e caminham calmamente até a sala onde antes, acontecia o apocalipse.
A cena era das mais tragicômicas possível, um peladão falava ao celular e todos os outros empunhando garrafas e cadeiras, entre os desmaiados e os que paravam em pé, olhavam-no com expectativa...

- Oi amor! Sim, estou na empresa ainda.. mas já estou indo pra casa. O que eu quero de janta? Oh, querida, não se preocupe, assim que chegar conversamos!

Desligou o celular.
O couro voltou a comer... as mulheres ao banheiro.
Ah, esses cúmplices safadinhos...



sexta-feira, 22 de junho de 2012

Janela

Dali da janela do quarto podia ver as gotas da chuva repicando sobre o asfalto já consideravelmente molhado pelo caminhão pipa que acabara de passar.
As gotas caem em um ritmo musical, começam devagar e vão aumentando sua intensidade.. até que cessam novamente. É como uma orquestra da natureza.
Dali da janela vejo gente jogando lixo nas ruas, tirando catota do nariz, coçando as partes íntimas e se amando secretamente. Vejo uma criança ajudando um cego a atravessar a rua próximo a um bar cheio de gente bêbada logo as nove da manhã.
Dali da janela vejo maritacas, pombas, árvores e um cavalo. Penso em serenata, em amor, em me jogar.
Observo a lentidão, a velocidade e o fluxo...
Lugar de respirar ar puro ou de fumar.
De bater papo ou de gritar para aquele vizinho cortando grama no domingo cedo.
Você pode jogar ovos, ou fazer sinal de coração com as mãos. Pode fazer gestos obscenos e ficar pelado.
Se não tiver grade, pode pendurar as pernas para fora, embora eu realmente não recomende isso...
A janela pode estar aberta ou se fechar. 
Os amantes pulam janelas, os maridos pulam também. Atrás dos amantes.
As cores da sua janela não importam tanto, mas sim o que você faz do lado de dentro.
Os binóculos de vizinhos tarados esperam ansiosamente um par de seios e bumbuns redondos descuidadamente à mostra na janela ao lado.
Da sacada, tenho medo. Janelas altas são perigosas... há quem goste de altura, pode ficar com ela.
Fico no chão. No máximo no primeiro andar. Aí sim tenho o prazer de olhar pela janela.
Se você reparar bem, tem gente que só fica na janela.
Que é pior que ficar em cima do muro. Porque em cima do muro, pende-se a duas opções.
Quem fica o dia todo na janela esquece da própria vida. Que já deveria ser difícil de cuidar.
Feche os vidros da janela do carro, abra a janela de casa... ah, essas recomendações de mãe...
O que me falta é ser artista de cinema pra entrar nas janelas de Hollywood e aprender falar inglês.
Mas me contento com a minha janela que é mais bonita, prefiro fechar a janela do Windows e abrir as milhões de janelas da imaginação.

Aliás, estou escrevendo da janela... vai ver que é por isso que tive essa inspiração.
Está começando a chover, tenho que ir.


quarta-feira, 20 de junho de 2012

Dolores e o carnaval

Pleno carnaval e eu ali, olhando pela janela a festa de rua que tomava conta da cidade festeira. Não queria sair na confusão toda, apesar de admirar a festa e as nuances que enfeitavam os meros mortais como eu..
Ficava com a cachaça. Cachaça e cachimbo, na janela esperando a trupe passar, quem sabe eu não poderia ver Dolores novamente! Minhas esperanças nunca morriam.. desde aquela tarde de quinta-feira ensolarada, nós dois no parque da cidade... dividindo amassos e pipocas.. fumo e Tubaína.
Depois disso, mais alguns lances aqui e ali. Até ela sumir de vez, a perdi pro carnaval.
De certo o carnaval era a sua vida. O desfile de rua, as marchinhas incessantes que revelavam letras e memórias de uma cultura tão bonita...
E eu ali, o pierrot enlatado em sua casa, cana e fumo. Observava atentamente pra ver se encontrava minha colombina com seu vestido laranja e azul, de fitas brancas penduradas que enlaçavam suas pernas levemente conforme os giros e danças.
Dos terreiros e dos ensaios direto para as ruas de paralelepípedos que formavam degraus irregulares. Todos tomavam cuidado, mas ora ou outra alguém caía, levantava e seguia seu rumo girando, girando...
Várias colombinas me encantavam, mas não achava a minha Dolores.
Em que carnaval se metera? Em que outros ternos e cartolas andara agarrando-se pelo colarinho e dividindo  tantas outras Tubaínas?
Me lembro bem no dia em que a vi a primeira vez.. mas isso não conto pra ninguém. Sinto ciúmes só de pensar que você possa imaginar Dolores...
Ah, Dolores...!
Me distraio totalmente com as serpentinas lançadas para o alto e avante, enlaçando-se entre as paredes brancas com janelas azuis, onde os espectadores bebiam, riam e cantavam juntamente com a fanfarra carnavalesca.
Havia de tudo em meio aos confetes, toda a cultura de uma geração imensa parecia se entender ali, no meio da multidão. A ilusão de que tudo ia bem dava-se em meio ao turbulento movimento das pessoas que enfeitavam-se, apertavam-se, mas respeitavam-se.
Via a banda passar, as fitas, as pinturas...
Dolores que era bom, nada. Garrafa já na metade, fumo trocado umas três vezes...
Uma pequena poça d'água que fazia reluzir um paralelepípedo me chama atenção. Logo ao lado avisto uma bela senhorita com rosa e verde, fitas brancas... corro para dentro da casa e pego meu par de olhos.
Lá estava Dolores, tão singela, tão atraente, tão única...
Olhou de canto pra mim, lá de baixo podia ver seu sorriso sacana de uma debochada de plantão, queria minha carne, nada além disso. E eu, homem, caçador e dono da razão, queria me casar com Dolores.
É por isso que não deve-se envolver com esses amores de carnaval... já dizia meu pai.
Enfim, acenou pra mim como quem não queria nada, sorriso no rosto, rodada de vestido... foi sumindo, sumindo aos poucos.
Até que desapareceu para sempre na multidão que a engolia feito maré alta.
Coragem pra descer no meio daquela gente toda eu não tinha. Era capaz que caísse no chão e fosse pisoteado por algum pierrot obeso com sapatos gigantes... ou talvez era só o medo de me encontrar com Dolores novamente e não conseguir esquecê-la nunca mais...
Se é que isso já não acontecia. Por isso a cana, por isso o estilo ranzinza de um velho apaixonado que vivia com o coração na mão. Bem que meu pai avisara...

Ah, Dolores...



terça-feira, 19 de junho de 2012

Revolução

Pare agora de rezar, fazer preces pedindo amor, paz, compreensão e dignidade. Agradeça e peça força pra seguir em frente, se quiser.
Faça o seguinte. Saia pela rua, andando mesmo, cumprimente todos de acordo com o período do dia (por exemplo, bom dia, boa tarde, boa noite). Não demonstre qualquer culpa por estar desejando bons ventos para as pessoas.
Se a situação permitir, abrace, converse mais e, quem sabe, vá para outro lugar continuar as descobertas de novas vidas.
Puxe um assunto com o frentista, o cobrador, saiba o nome das pessoas com quem se relaciona todos os dias e pode ser que elas mostrem que realmente são muito simpáticas e prestativas, ao contrário do que você julgou quando as viu.
Não julgue, não quero parecer clichê, mas não julgue.

Saí hoje cedo pra uma caminhada tranquila e cumprimentei pessoas. Peguei um elevador lotado semana passada e contei uma piada... não tem nada mais bonito do que ver as pessoas quebrando seus paradigmas, regras e alegrando o seu dia com um gesto tão fácil e simples.
A recompensa é imediata e, mesmo que não me torne grande amigo das pessoas, fiz diferença naquele dia da vida delas.
Sem religião, sem santos, sem grandes efeitos especiais.
Deixo bem claro que isso independe da religião. E desejo realmente que ela não seja um pretexto pra discussões sérias e fanáticas.
O segredo é levar o amor que você tem pra doar aos que sentem-se imobilizados pelos pedidos de paz, aos que sentem-se paralisados pelo medo das ruas, das pessoas.
Claro que sinto o preconceito, toda pessoa muito tatuada ainda sofre um pouco com isso ainda, principalmente dos mais velhos. Mas a partir do momento que você quebra o gelo da situação, tudo vai por água abaixo e podemos então nos ver como realmente somos, internamente.

Como comunicador, sinto-me na missão de entrar em assuntos como esse.
Deseje sinceros carinhos verbais, gesticule movimentos bonitos com o corpo bonito que tenho certeza que tem.
Não sinta-se ameaçado o tempo todo. Tome cuidado, sim, ainda existem pessoas ruins.
Mas tudo que quisermos mudar, tem que ser desta forma. Como vamos pedir gentilezas se não oferecemos um pouco do nosso tempo livre pra ajudar alguém? Pra ouvir alguém?
Invente um argumento, surpreenda com frases espontâneas, olhe nos olhos.

"A única revolução verdadeira é o amor".

Valendo.



segunda-feira, 18 de junho de 2012

Sutilezas

Festa de aniversário.. por muito me questiono sobre isso.
Não gosto, fujo, não sinto, muitas vezes, merecedor de um singelo "parabéns a você".
Mas o tempo passa.. e talvez eu envelheça mais rápido mentalmente do que fisicamente.
Então as percepções ficam mais afloradas para o que há de mais sutil em toda a vida que é insana e desregrada. Se você perguntar para as pessoas o que é esta vida, escutará as mais variadas teorias, mas ninguém pode te afirmar com certeza, clareza, enfim...
Apesar de eu nunca ter gostado muito da música dos parabéns, nem de festas pra mim, tenho sério respeito por quem se permite levar e não se chateia com uma festa surpresa..
Falo tanto de amarras, de soltar as presilhas que a vida nos coloca.. mas ainda há tanto pra soltar..
Na verdade acho que nunca nos soltaremos por completo, queremos estar presos sempre há alguma coisa, para tentar soltar. Se a vontade de soltar amarras e romper barreiras acabar, acabou-se tudo o resto.
É tipico daquela pessoa que em vida já morreu.
Então me dou ao luxo de receber os parabéns, de sentir parte dessa frenética existência.
A partir do momento que você se entrega para as percepções, as portas se abrem. Tente uma vez e sentirá que tudo fica mais brilhante, ainda que cinza.
Saia hoje, não espere amanhã, das preocupações infinitas. Não as esqueça, mas as entenda de outra forma.
Quem sabe seus horizontes se expandam de uma forma que não mais serão pequenos como antes, assim como aconteceu comigo.
Experiência própria, sentimentos mil...

Apoio toda e qualquer forma de pensamento, conhecimento e até mesmo os comportamentos considerados "estranhos" pela normalidade que afeta o mundo.
Paro pra rever os vídeos dos Trapalhões e lembro de como o mundo era menos sistemático.
Façamos ele não perder o ritmo mais uma vez.
Posso contar com você nessa corrente?



terça-feira, 5 de junho de 2012

Consciência

Aguardo ansiosamente o horário nobre da televisão brasileira para desligá-la.
Efeito estufa.
Estufa a cabeça cheia de merda e informação adicional que você apenas olha, e descarta.

A gente reclama tanto mas erra muito mais.
Pedimos paz, mas nem sequer conhecemos a nossa própria paz. Onde ela mora?
Nos alimentamos, antes de tudo, das energias.
Aquela velha história de "gentileza gera gentileza" é a mais pura verdade.
Você atrai as coisas que o circulam.

Enquanto reclamamos do rumo do país, que tal olharmos para o que fazemos?
Você pára no sinal vermelho?
Você bebe e dirige?
Você realça o que as pessoas tem de bom? Ou aponta o dedo sempre para o lado frágil?
Você deseja um "bom-dia" sincero?
E o teu abraço? Teu sorriso?
E o suborno?
E o jeitinho brasileiro nas ruas, no cartório, nos lucros?
Hipocrisia também conta pontos negativos.

Não estou pregando.
Mas a intenção é falar sobre amor, seja da forma que você entender.

E por mais contraditório que possa parecer, estas imagens são pra mostrar descontentamento sim!
Descontentamento, susto, mal-estar.
Mas não com alguém específico, ou com alguma CPI do momento.
É pra mostrar que temos os governantes que merecemos.
O buraco é mais embaixo.

Luz.

(Obrigado a todos que mandaram as fotos para formar esse post)

Eu mesmo


Allan Nucci


Nashala Goldar

Mirella Bacco

Leandro Novelato

Luiz Fernando Argentin

Alexandre Savietto


Pablo T. Sola

Demétrius Dentini

Rafael Ferrucci




quinta-feira, 31 de maio de 2012

Um pouco só de sacanagem (parte 6)

Ainda meio tonto, num quarto praticamente em completa escuridão, podia sentir um filete quente que lhe escorria pelo canto esquerdo da boca. Imaginou ser sangue...
Tentou levantar mas a sonolência excessiva e as algemas que o prendiam na cadeira impossibilitavam de ter qualquer reação mais brusca, qualquer sinal de força. Ainda confuso, fez um esforço enorme para voltar algumas horas no tempo e entender como havia parado ali. Não tinha forças pra gritar e uma fina fresta de luz adentrava pelo lugar, uma luz vermelha, baixa e confusa.
Fechou os olhos com força tentando se lembrar de algo.. o que lhe vinha a mente era aquele olhar no retrovisor. Lembrava-se dele perfeitamente, não havia como confundir se os visse novamente.

Lembrou que estava no trânsito, congestionado e tedioso... um carro novo entra em sua frente e ele pensa em expurgar todo o seu sentimento de raiva quando observa o reflexo do retrovisor deste mesmo carro..
"Que par de olhos.." - pensou.
E realmente eram belos, os mais belos que já tinha visto. Resolveu guardar a raiva que se transformava logo em tesão e uma mistura de curiosidade. Eram dois pares de olhos femininos, tinham uma aparência ao mesmo tempo sensuais e desafiadores.
Pensou naquele par de olhos olhando-o de outras formas, de outros ângulos... percebeu que era retribuído com um incessante olhar fixo no espelho do carro, piscadas leves e talvez propositalmente eróticas.
Seria coisa de sua imaginação, pensou... devia ser o trânsito. Resolveu olhar os outdoors, as placas, o Camaro que estava parado ao seu lado, pintura fosca e listra preta. Seu sonho de consumo. Consumo distante..
Sabe que distraiu-se apenas um ou dois minutos, no máximo.
Os olhos ainda o seguiam pelo retrovisor. Como seriam os cabelos? Alta, magra, baixa, gorda? Os olhos eram tão cativantes que ele mesmo despia-se de todos esses padrões se fosse necessário, apenas para adentrar naqueles olhos de uma maneira perturbadora.
Seu telefone toca, era a ex-mulher reclamando que a pensão do filho estava atrasada... seu nível de concentração obcecada por aquele par de olhos o fez dizer "sim" e "não" algumas vezes, pouco importava a sua penalidade, a sua falta com a ex-mulher, o seu dinheiro.
Queria o par de olhos mais perto, tão perto ao ponto de que os lábios se encontrassem e seus corpos formassem uma única peça rara no espaço da imaginação, da liberdade não-condicional...

Agora estava ali, preso ao que deveria ser uma cadeira, algemado, quarto escuro e sangue escorrendo-lhe pela boca amarga.
A fresta de luz vermelha aumenta, um corpo adentra na sala quente e senta em seu colo...

Não era raro alguma mulher que passasse chamar a sua atenção.. mas naquele trânsito e aqueles olhos... era algo inimaginável em sua percepção, em seus desejos mais íntimos..
Soltou instintivamente o sinto de segurança.. destravou as portas.. carros começam a andar em um ritmo lento, mas o movimento o impedia de descer do carro. Continuou com o fluxo, 18:45h, o trânsito buzinava, vociferava, agredia, estressava, alucinava. Mas o par de olhos castanhos claro o seguiam incessantemente e era hora de tomar uma atitude, ou seja lá o que fosse aquilo.

O corpo que sentou-se em seu colo começa a beijá-lo de forma quente e lenta... Mesmo em seu estado, parecia gostar daquilo. Quem era ela? O que aconteceu?
Não sabia se era dia, noite, tarde, madrugada.. mas os lábios quentes transformaram-se logo em uma diversão ousada para aquela ocasião e ele viajava imaginando o corpo, os olhos, as mãos.. nada importava, nem mesmo o fato de estar algemado sem saber quem o tocava...

Quando teve a oportunidade, encostou o carro em uma rua próxima e correu. Correu em direção ao carro dos olhos... As portas estavam destravadas, ele entrou e logo o par de olhos mostrou-se muito mais que apenas olhares. Os trincos das portas fecham-se. Silêncio.
O que ele estava fazendo??!? Tinha enlouquecido, pensou..
Até que ela lhe mostrou para onde aquilo tudo iria dar. "Mais uma aventura", pensou. "Estou no lucro".
Essa ele teria que contar pra alguém.

O quarto escuro e a proporção de prazeres que tomavam conta daquele momento onde ele, imóvel e imobilizado nada podia fazer a não ser sentir, admirar em sua imaginação e dar o poder pra alguém, algo que não fazia nem no seu trabalho.
Sua onipotência não o deixava descansar, ser mais leve e pensar nas coisas mais valiosas da vida..
Era uma mistura interessante de prazer.. não tinha medo, mas queria poder usar suas mãos, seus próprios meios... mas não podia.
Seus sentidos estavam aguçados demais para conseguir pensar em alguma coisa...
Toda a genialidade daquilo que ele realmente não conseguia explicar terminou com um tapa bem dado em seu rosto, tão forte que ficou abobado e não reparou que suas algemas tinham se soltado.
O corpo, par de olhos, mulher... acendeu a luz baixa do lugar e ele pode ver que era uma espécie de sala de TV. Ela estava nua e ele finalmente pode ver suas curvas mais delineadas, mais interessantes até que os próprios olhos... um conjunto inexplicavelmente em sintonia.
Acendeu um cigarro, sentou-se próxima a ele em uma pequena poltrona de canto. Fitava-o com os olhos que antes o figaram para aquele lugar.
Soltando a fumaça graciosamente do cigarro que tragava com toda a calma do mundo, o fitava com um sorriso de canto de lábio.

Ele não conseguia entender muito bem aquilo tudo, mas gostou. "Quanto volto?"
"Nunca mais, querido".

Sentiu-se tão impotente diante daquela situação, daquela mulher...
Levantou-se, procurou a saída do apartamento, que mostrava-se tão comum que lhe assustava.

Até hoje procura por estes pares de olhos no trânsito, nas ruas, mas sabe que foi como ganhar na Sena.


segunda-feira, 28 de maio de 2012

Visão de dentro

Sai do banho, os pingos d'água que escorrem pelo seu corpo faz com que muitos desejariam sê-los naquele momento.
Secador, creme, maquiagem, batom.
Perfume, suave, lingerie, paciência e pensamento longe..
O limite entre o absurdo e a vaidade se perde no seu pensar, suas unhas pintadas da cor que mais gosta agrada a maioria..
Luxo, riqueza, sonho, desejo, anseio de viver melhor.

Um beijo em sua filha que dorme como um anjo, inocente e bonita como as crianças devem ser.
Alguns passos, observa-se mais uma vez no espelho, vestido justo, decote que realça o movimento natural dos seios, corpo considerado escultural pela maioria.
Tudo certo na checagem.
Bolsa, lenço, documento, paciência.

O celular toca silenciosamente, ela sabe que é a sua hora de vender o que nunca quis para ganhar o que sempre sonhou.

Olha para a filha que dorme solta como uma estrela silenciosa no sofá da sala com a TV em um canal desses de desenhos infantis.
Sempre quando pensava em desistir, a resposta era ela.
Sai silenciosamente, encosta a porta.
Chave, pulseira, dor, cadeado.

Elevador, espera, ansiedade, impaciência.
Na portaria, observa o carro que aguarda o seu prazer em troca de notas azuis.
Eram sempre bem-vindas, mas o melhor momento era o fim daquilo.
De volta para a sua cama, casa, filha, TV.

Fecha o portão e entra no carro.
As mãos que deslizam por sua coxa não são aquelas que tempos atrás a faziam sentir mais mulher.
A dor de deixar para trás a janela do apartamento com as luzes da televisão era compensada pela necessidade de fazer aquilo tudo acontecer.
O pré-julgamento, a dor de viver.

Nem tudo é o que parece e nem tudo o que parece gosta de ser assim.
Momentos de visões deturpadas, luzes baixas, prazeres alheios.
Essa era a missão, quem sabe, com um pouco de sorte, conseguiria prazeres também.
Mas quase nunca era o que desejava encontrar pela frente.

Discrição, peso, maquiagem borrada.
As pernas que antes estavam embebidas de creme hidratante agora eram cansadas e secas.
A hora de voltar, receber, ser novamente por algum intervalo.
Desta vez não tivera a sorte do prazer, quem sabe no próximo passo da mesma noite.

Cada um com o seu peso de viver.




sexta-feira, 25 de maio de 2012

No espelho

Quer alguém mais cúmplice do que a sua imagem no espelho?
Me olho, me enxergo, encaro no olho a olho, me dispo de toda a roupa que acompanha meu corpo nessa jornada complexa da vida. Canto alguma canção pelado, imitando Elvis, talvez Ney Matogrosso. Posso até imitar eu mesmo se quiser. Vai do gosto.
O espelho me mostra até o que eu não quero enxergar, ele conhece meus pontos fracos, minhas veias saltadas, minhas manchas, minhas fraquezas. Mas conhece também o lado bom, a silhueta, o perfil e o frontal, a mesmice e a mudança, o novo e o velho.
Sabe que no fim do dia, ao encará-lo de frente, está por vir uma pequena reflexão, ainda que resuma-se a fazer a barba, lavar o rosto ou escovar os dentes. Ele sabe se você não escovou direito, se fugiu da academia, se bebeu demais ou comeu de menos.
Ele te diz que você precisa cortar o cabelo, espremer uma espinha, sorrir mais.
É tão cruel quanto real, que muitas pessoas tem medo de espelho mas encaram-no o dia todo, como se sua insegurança fosse reforçada pela opinião de um terceiro que se admira, mas enxerga mais defeitos que qualidades e quer esconder suas "imperfeições", seja lá o que isso for.

O espelho te mostra que beldades são raras... aliás, quem são beldades?
Posso ser uma se eu quiser. Posso ser o que eu quiser e enxergar no espelho, antes que ele se quebre com a suposta feiura. Posso inventar ser James Bond ou pegar o desodorante e fazê-lo de microfone achando estar perto de um cover fiel do Sidnei Magal... Posso contar uma piada pra ver como minha interpretação será na hora ou ensaiar um discurso de amor daqueles que quando se chega perto da pessoa esquece de tudo e acaba improvisando coisas terríveis e sem sentido, mas que são muito mais bonitas do que os ensaios no banheiro.

E o espelho está lá, todos os dias, todas as noites. Não foge por você aparentar o que é. Na verdade, se alguém tivesse que ter o direito de reclamar de você, seria ele.
Mas não, cala-se, encontra a sua cabeleira desarrumada, os seus olhos sujos e seu bocejo escancarado e nada diz, apenas mostra o que vê.
E sempre é bonito.




terça-feira, 22 de maio de 2012

Inferno particular

Haviam corpos espalhados, de todas as cores, de todos os tamanhos... espalhados e pronunciando alguns sons não tão identificáveis a primeira impressão. Onomatopeias, na verdade, em forma de sussurro, em forma de gritos..
Não consigo me lembrar exatamente do cheiro que tinha esse lugar, mas era uma mistura fina de coisas pesadas, pessoas pesadas, mentes pesadas que emergiam de uma imaginação fértil e sem nenhuma vergonha de ser quem eram, de interpretar as personagens que escolheram para representar na vida.
Algo sem lei, documento, registro e burocracia. Essa era a parte cativante, estimulante. Visualmente, aliás, de primeira, parecia algo interessante em que você sente desejo de jogar-se sem medo de ser feliz, ou pensar em ser.
Não há como saber se era felicidade, pecado ou diversão, apenas. Só perguntando para aquelas pessoas, aqueles corpos quentes que emergiam de seus movimentos contínuos e danças abstratas que ora sensualizavam, ora se perdiam nos próprios passos e caíam no chão. Mas ninguém aplaudia, cada um entendia,de certa forma, o seu próprio espaço e o seu direito de ir e vir, dançar e ser.
Mesmo os que estavam mais em outra dimensão do que nesta, mesmo os que tomavam substâncias de procedência duvidosa, mesmo os que acreditavam não estar lá... nem eu sabia se estava ou não.
Passando de um lugar para o outro, via que não tinham vergonha, medo ou dúvidas. Eram seguras de suas atitudes, ainda que não aceitas pela sociedade cada vez mais careta e hipócrita. Talvez na televisão você já tenha visto coisas mais pesadas que isso. Talvez não, com certeza.
Tudo aquilo que sempre quis dizer, diziam, tudo o que você queria fazer, faziam... Pode ser que o preço pra que isso aconteça seja um tanto alto e o custo não é pra qualquer um bancar a ideia de ser assim.
Por quanto tempo eu observava tudo? Não me lembro...
Talvez tenha dançado também, caído traçando minhas próprias pernas correndo de medo de alguém invadir minha liberdade... incômodo por alguém me observar ser quem escolhi representar para aquela ocasião.

Talvez...



segunda-feira, 21 de maio de 2012

Tribo

Vi na televisão há alguns meses atrás que um canal aberto iria transmitir um reality show diferente, chamado Perdidos na Tribo.
Só pela chamada para o programa achei interessante e pintou uma ponta de esperança da minha parte com essa mídia que eu tanto falo mal. Acabei assistindo aos episódios através do YouTube porque achei mais fácil, mas desde que comecei a acompanhar o programa, apesar da ideia não ser brasileira obviamente, me surpreendi com duas coisas.
Primeiro, a realidade e a abrangência cultural que um programa desses traz pra nós, mesmo sendo o reality. Segundo, o prêmio de apenas 250 mil reais...

Enquanto a galera toma sol, se masturba e faz brigadeiro nos outros realitys e ganham 1 milhão, neste as famílias tem que ser aceitas por tribos estrangeiras, caçar, buscar água, aceitar costumes e novos modos de vida para tentar entrar para a tribo, que envolvem não tomar banho, rituais e seguir ordens de pessoas que nem sequer falam a sua língua.
Claro que o investimento do programa é menor por causa de uma audiência respectivamente inferior aos realitys que nada nos trazem de informação ou algo interessante.Mas se você reparar ao seu redor, pode entender o motivo de um fazer tanto sucesso e ter tantos investidores enquanto o outro caminha por audiência e é transmitido apenas uma vez na semana. Eu achei realmente incrível a ideia do programa e recomendo a todos que sentirem vontade de assistir, basta procurar no YouTube por "Perdidos na Tribo" (a versão brasileira é transmitida pela Band).

Fim.