quarta-feira, 11 de julho de 2012

Repartição

Fora da repartição, Marcela, a recepcionista parou de fazer as unhas e atualizar o perfil no Facebook quando avistou um dos clientes que se aproximava. Estava com uma lingerie de renda, estilo fio-dental para que quando saísse do trabalho encontrasse seu namorado e fossem ao motel.

Do lado de dentro da repartição pública seu Anestor fingia trabalhar freneticamente em documentos vazios no word, enquanto jogava paciência e pensava na partida de poker daquela noite, onde comeria a amante para depois falar pra sua esposa que o trabalho atrasou e ela fingir acreditar que realmente funcionário público não tem hora pra sair. Gostava de cutucar o nariz bem fundo e grudar debaixo da cadeira.

Dona Matilde fazia o café. Só observava.. sabia de tudo. Aliás, porque ela mesmo que limpava as cadeiras. Menos e de seu Anestor.

Seu Eloísio também fingia.. Fingia que não era gay. Embora fosse realmente difícil esconder as reboladas ora ou outra com seus "um e noventa e dois" de altura. Nada discreto. Fazia luzes no cabelo e fumava pelas ventas o dia todo. Sempre era hora de sair para fumar e tomar (quase) todo o café que dona Matilde fazia.

Maria Luíza cheirava tudo, coitada. Quando não tinha pó, cheirava fungo dos arquivos que era encaminhada de cuidar. Era pó de sujeira, pó de coca, pó de aspirador que, vez ou outra dona Matilde aspirava. Café não tomava, pois dizia que acelerava seu coração.. Matilde fingia que não sabia do talquinho branco quando conversava com ela. Olhos de esquilo frenético, pronto para sair correndo para qualquer lugar que não fossem aqueles arquivos.

Dona Matilde lavava os copos. Seu Eloísio almoçava pensando no bofe. Dona Matilde sabia.

Anestor saía sempre pra almoçar fora, não gostava muito dos companheiros de repartição. No caminho para o restaurante mais próximo, contabilizava as bundas que conseguia fotografar mentalmente enquanto conversava com sua esposa no celular sobre como iriam pagar o IPTU daquele ano. Dava aquelas olhadas indiscretas mesmo, que sugam as calçoilas mais desprevenidas e desnudam qualquer uma que estivesse apta para o amor.

Marcela estava apaixonada. Fazia de tudo para o seu amor enquanto ele dava duro, literalmente, nas gravações de seus filmes. Dizia ser ator... só não falava de quê, coitada da Marcelinha.. João, o namorado dela gravava filme pornô gay. Talvez seu Eloísio o tenha visto em alguma telinha..

Ah, essas relações interpessoais..

Dona Matilde varria a recepção do departamento enquanto Maria Luíza grampeava alguns documentos. Ora os dedos, quando estava com o pó mágico de esquilo.

Depois do almoço todos voltavam para a repartição, faziam unha, cabelo, barba e bigode e fingiam que a responsabilidade era enorme e que o volume de trabalho requeria um salário maior. Juntavam-se somente quando queriam um aumento, provocariam greve e reivindicariam seus direitos.

Depois trairiam, fingiriam, enganariam, cheirariam e trabalhariam um pouco, porque ninguém é de ferro...

E dona Matilde voltava todos os dias pra casa, duas conduções, pensando na roupa na máquina de lavar que tinha que pendurar, na janta que tinha pra fazer, nos filhos que tinha pra criar e no marido que chegaria bêbado mais uma vez e teria que cuidar.

No dia seguinte estariam todos lá, fingindo que fingiam enganar.
E talvez conseguissem... só não enganavam dona Matilde.
Ah se ela escrevesse um livro...!