segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Situação

- Salve, Cleiton!
- Fala, Chipanza, como tá?
- Tudo certo, meu querido.. Teodoro, aquela breja gelada!!
- E aí, irmãozinho, o que me conta de novo? Quanto tempo, cara!
- Pois é, andei dando uma sumida por uns tempos.. coisa de mulher grávida, sabe como é..
- Puuuutz, cara, é papai?!
- Pois é..
- E como foi?
- O processo?
- Não, porra, a gravidez, as sensações.. conta aí!
- Ah, foi bem complicado.. a Patty queria comer de tudo, até ponta de cotonete. Limpa, pelo menos..
- Putz..
- Daí pra pior, Chipanza.. começou assim. Sorvetinho de morango com chantili, ameixa com flocos, passas ao run, melancia com leite condensado..
- Sei..
- Daí passou pra cheese-burguer triplo com muito picles, pimenta então.. nem se fala. A hemorroida que o diga..
- Patty tem hemorroida?
- É, Cleiton, é..
- Porra, nunca me disse nada..
- E deveria?
- Bom.. nada não, continua! Teodorooo!!! Eu disse gelada, porra!!!! Recolhe essa aqui que xocou..
- Ah, daí foi seguindo pra parte do enjoo. No começo tava de boa, era com cheiro de perfume, parei de usar. Depois foi pra cheiro de amaciante, pedimos pra Cícera diminuir a quantidade. Depois foi de gasolina.
- Gasolina?
- É, não podia abastecer no posto com ela que já vomitava no chão. Só abria uma fresta da porta e despejava o que tinha comido no pé do frentista..
- Bom, pelo menos não era no carro..
- É, ás vezes não dava tempo.. Passei a sair de casa com um saco plástico..
- Complica assim, né..
- Nem me fala.
- E o sexo?
- Ah, o sexo.. acho que nem sei mais fazer isso, cara.. enjoou disso também.. e pior que eu tinha mor tara com esse negócio de grávida, sabe..
- E nem tentaram?
- Ah, tentar tentamos.. mas ela começou a passar mal, invocou com a cor da cueca que eu tava usando e que tava dando enjoo nela..
- Puta que pariu...
- É, Chipanza, o negócio fica sério quando rola uma gravidez.. Teodoro!!! Traz vodca!!
- Vai misturar, Cleiton?
- Vou dar uma afogada hoje.. pilequinho, sabe?
- E a Patty não liga?
- Nessas horas já deve ta dormindo abraçada com aquele travesseiro de grávida.. Negócio estranho pra cacete.. Já viu um?
- Vi não.. nem sabia que existia isso.
- Pois é.. parece uma linguiça gigante..
- Vibra?
- Não fode, Chipanza..
- Foi mal.. piadinha!
- Sei...
- Mas e aí, como que rola com a casa, o trabalho?
- Filho chora e mãe não vê, Chipanza.. o negócio ficou sério..
- Puta merda.. Mas tava na hora de ter filho já? Dois anos de namoro..
- Ah, Patty pediu, era meu ponto fraco..
- Como é que é isso aí??
- Ah.. naquela hora.. a gente tava numa noite meio selvagem, sabe.. óleo de massagem, incenso, hidromassagem.. a gente passou do ponto e quando eu tava lá, no meio da posição de ataque do tigre azul (coisa de kama-sutra), ela me sussurrou no ouvido: "Faz um filho em mim...". Pronto.. aquilo lá mexeu comigo e com o meu brother aqui.. e do jeito que foi pegou. Assim, de primeira.
- Caceta, hein, Cleiton.. cê é tanga frouxa mesmo.. mulher pede e você dá assim, um filho?! UM FILHO!!
- Calma, Chips.. eu sei da responsa e tal.. mas meu negócio é com mulher grávida.
- Ai meu Deus..
- Ah, esquece isso.. e você? Como vai a vida de solteiro??
- Bom, dou um bote aqui, outro ali.. saio na caça mas finjo que sou tímido. BLAU!
- Puta susto, Chipanza, cacete! Que que é BLAU, porra???
- Porra, Cleitão! Blau, mermão.. vou lá e chapisco o território.. as meninas ficam doidinhas.. perfume de feromônio. Parece estar funcionando. E você ta casado, nem dá um blau fora do penico mais..!
- Nem me fala.. Com essa história da Patty enjoar com tudo.. Meu PC ta parecendo um puteiro virtual..
- Teodoro! A saideira.. aquela.. trincando!!
- Puteiro virtual? Conta mais..
- Ah, esses sites merdinhas que a gente perde tempo de vez em quando, sabe? Das putonas?
- Sei..
- Então.. só que agora visito todo dia.. to até pagando carteirinha vip pra ver em HD e enquadramento especial..
- Como é?
- Enquadramento, porra.. da ação e tal..
- Ah, tendeu..
- Bom, acho que vou pedir a conta.. a Patty logo vai ligar pedindo pra eu levar barra de cereal e pasta de dente.. a última moda dela. Come tudo junto, numa tigela enorme...
- Cacete.. que bosta..
- Pois é.. Fecha a conta, Teodoro!!!
- Mas, vem cá, aquela história da hemorroida.. como que é mesmo?
- Ah, cê ta tirando com a minha paciência, né! Falta de respeito, porra..
- Só curiosidade.. é que eu ando sentindo umas queimações.. bom.. queria umas informações.
- Ah não, Chips.. a essa hora não dá..
- Tendeu.. Você já teve?
- Tive.. operei.
- Doeu?
- Anestesia, porra.. sente nada não..
- Ah.. É que..
- Ficamos assim?
- Bom, acho que dá pro gasto.
- A Patty só não pode desconfiar..
- Deixa comigo essa parte.. e vê se cuida desse.. desse seu problema aí..
- Quando resolver te aviso.. desculpa não rolar nada hoje..
- É nóis..
- Aquele abraço.. apertado..
- Porra, Chips, pára com essa merda aqui na frente de todo mundo. Aperto de mão e cada um pro seu lado. Quer me comprometer???
- Ah.. é a saudade.. mas tudo bem, meia noite na webcam.
- Fechou.

Teodoro sabe de cada coisa...




terça-feira, 16 de outubro de 2012

Confissão

Estava um tempo "chove-não-molha" do lado de fora da igreja. Padre Everaldo comia osteas dentro do confessionário. Sem ninguém saber, claro. Ou faziam vista grossa, já que ele era o querido das confissões.
Além de osteas, molho de pimenta árabe. Só pra acompanhar.

Marco Antônio chegou esbaforido na igreja já enroscando a jaqueta na maçaneta da porta. Everaldo imaginou, pelo barulho e silhueta, que era ele. Os pelos do braço arrepiaram, pigarreou e limpou os dentes, embora ninguém pudesse vê-los.

Marco não confessava havia dois anos. Virou ateu por esse período, pouco antes de ver sua sogra morrer engasgada com bolinho-de-arroz. Estavam sozinhos na casa dele. A mulher jamais o perdoou, achava que tinha realmente matado a velha. Pediu divórcio. Marco passou a beber. Nunca mais fritou bolinhos-de-arroz, sua especialidade na época.

Abriu a porta do confessionário, sentou-se, ainda molhado.
- Padre Everaldo?!
- Sim, meu filho, Deus o abençoe. Que mandas?
- Pô, Aldo (era assim que o chamava antes de virar ateu), to com uns pepinos aí.. acho que pequei.
- Me explica melhor, Tonho..
- Sabe o que foi, Aldo.. desde que vi minha sogra morrer engasgada com o bolinho-de-arroz, uma especialidade minha na cozinha, diga-se de passagem, o trauma foi forte. Minha vida mudou e nem mais em Deus quis confiar meus problemas...
- O demônio aproveitou para se apossar, meu filho, ele chega nessas horas.. continue.
- Então, o bolinho demoníaco entrou em minha vida dessa forma traiçoeira. Depois que a Celina me abandonou achando que eu matei a velha, comecei a ter sonhos terríveis!!
- Hun, fale mais, meu filho..
- Sonhava com a minha sogra correndo atrás de mim, espumando pela boca e arremessando bolinhos-de-arroz, atrás dela vinha a Celina com a cruz e atrás da cruz, o Beraldo.
- Quem?!
- Beraldo, Aldo, o cozinheiro que me passou a receita dos bolinhos e que, mais tarde, descobri que a Celina caía de boca não só nos pratos que ele fazia.
- Santo Deus..
- Pois é.. E tem coisa pior ainda. Fiquei carente, sabe como é, um ano inteirinho sozinho...
- Pecou aí?
- Calma, ainda não. Fui atrás de uma profissional, sabe.. do sexo.
- Puta, Tonho?!
- Não! Profissional do sexo, Aldo! Olha o modo de falar...
- Sei.. e o que aconteceu depois disso?!
- Bom, no começo eu ia até o motel com ela e conversávamos. Muito. Essas profissionais são umas belas psicólogas às vezes. Colocam a gente lá em cima, sabe..
- Não..
- Bom, enfim, conversamos muito. Umas doze idas de conversa no motel. Até que começou a rolar uma confiança e me deixei levar.
- Mas pagou por sexo?
- É.. uma hora eu não aguentei, Aldo, a moça lá peladinha da silva já sem paciência com as minhas conversas de carência e decepção amorosa.. Acabou me atacando. A moça sabia fazer o lance todo e eu achei que fosse morrer. Mas foram passando os encontros, a gente foi se afinando..
- Afinando?
- Criando afinidade, Aldo. Os gostos batiam.. sabe como é, né..
- Não.
- Porra, é modo de dizer!!!
- Ah sim, claro, continue..
- Até que ela me chamou para o flat dela... conhecer. Ela estava de mudança e queria que eu ajudasse na decoração. Fui. No bolso levei um azulzinho pra garantir. Idade, né, Aldo.. você nem sempre pode contar com aquela amizade firme de antes com o Tinoco.
- Tinoco?!
- Bom, esquece essa parte. Fui pra casa da moça. Estela era o nome dela. O artístico era Space Girl.
- Ave Maria..
- Pois foi exatamente isso! Rezei, como há muito tempo não fazia, uma Ave Maria! Só pra garantir.. pra quem já havia voltado a crer, tinha noção de que estava pecando.
- Subi no flat. Ela estava limpando as coisas.. de calcinha! Só de calcinha, Aldo.. Aí é pra quebrar a banca, né? Pedi um copo d'água.
- Pra tomar o azulzinho?
- Isso.
- Tomei. Escondido, claro.
- Pelas minhas contas, tu vai ter que rezar muito pra enfrentar o demônio..
- Calma, Aldo, tem mais. A gente acabou se pegando ali mesmo, na sala, rolando no tapete persa dela de um lado para o outro na nave da Space Girl. Aí já viu. Bateu a fome.
- Mais?
- Não, Aldo, fome de comida mesmo, porra!
- Ah sim, claro.. continue..
- Ela sugeriu que eu fosse tomar um banho que ela ia cozinhar algo pra nós dois. Ela também estava caidinha por mim, nem cobrava havia uns três meses. Mas do chuveiro comecei a sentir um cheiro bem familiar..
- De quê?
- Bolinho-de-arroz. Claro que pensei que fosse um lapso da minha síndrome do pânico atacando. Mas quando eu saí do chuveiro, padre.. de toalha mesmo, vi os benditos fritinhos em cima da mesa. Comecei a suar frio e quando Estela me viu, foi logo me socorrer. Mas não quis contar o que estava acontecendo e ela disse que era fome. Nos sentamos à mesa..
- Ai meu Deus..
- Até aí tudo bem. O problema era fazer desfeita com a merda dos bolinhos.. comi um. Tudo bem. Até que.. vai vendo a maldição, Aldo: a Estela começou a tossir e não parava mais!! Tossia e esbugalhava os olhinhos, bebia vinho mas não adiantava nada. Fiquei louco. Comecei a bater nas costas dela, sacudir, balançar a cabeça.. acho que me esforcei tanto que..
- Que...?
- Acho que matei a puta, seu Aldo.
- Ah, agora é puta?
- Ah sim, me desculpa, Estela.
- Puta merda, hein, Tonho?! Desse jeito a coisa fica séria.. E a moça? O que que você fez?
- Saí correndo, Aldo. Como uma moça, na ponta do pé. Pulei o muro da garagem pro porteiro não me ver. Pequei, padre... muito!
- É... mas foi logo querer casar com puta, Tonho! Pera aí, deixa eu calcular a penitência.. Tem calculadora científica aí?
- Não fode, Aldo.. pô, e a amizade?
- Está crendo novamente?
- Sim!
- Na hora do aperto..
- Aldo, vai, me diz o que eu tenho que fazer logo pra Deus me perdoar. Tenho um medo dos infernos do demônio querer me puxar pra baixo quando eu morrer.. até choro de pensar.
- Anota aí. Vinte vezes o pai-nosso, vinte vezes ave-maria, ajoelhado no milho. E uma doação de ostea para a igreja.
- Ostea??
- Isso. Ah, e molho de pimenta árabe. Sabe como é, o bispo vem fazer visita no fim do mês e ele adora um molhinho desses...
- Pô, Aldo.. acha que assim Deus vai me perdoar??
- Olha.. veja bem, Tonho. O pecado foi forte, né?
- Eu sei, padre.. dá uma força aí porque eu já to sentindo o calor do inferno aqui na sola do pé!!
- Bom, vou ver o que eu posso fazer.. e vê se não me apronta mais com puta hein. Quer dizer, com ninguém!
- Ta bom, Aldo.. vou fazer o que me pediu.. lá no milho.

Foi saindo do confessionário em direção a saída. Quando Everaldo lhe chama.

-Tonho! As osteas, as osteas!!
- Deixa comigo!



quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Carne

O cheiro de gente morta já não fazia tanta diferença na sua vida. Se tivesse ou não, tanto faz.
Depois de se tornar um investigador renomado e aprovado pelos escalões da alta classe policial seu cotidiano mudou completamente. Mas acabou se acostumando com o tempo, com o dinheiro, com a propina.

Não dormia quando, no começo, se envolvia em omissão de casos com resoluções óbvias e comprovadas até por não-peritos. Mas dizem que o tempo é o remédio para todas as dores. E devia ser.
Às vezes, de supetão, levantava da cama molhado de suor e com a imagem das pessoas que havia visto em condições nada humanas. Casos que tinham conclusão omissa, conforme mandam as disputas por poder.

Entre umas poucas saídas e outras, Eduardo tinha uma amiga que se passava por sua namorada para participarem de casas de swing. Tinha de ter alguma coisa pra distrair daquela vida alternativa que escolheu para seu próprio conforto.

Basicamente tinha atração por mulheres que mandavam nele. Algo que tinha de fingir fazer o tempo todo em sua vida, durante o expediente. Mas era nos fins de semana que deixava-se mandar por outra pessoa que não a sua própria sombra, nem seu superior. Deleitava-se nos contos, nas contas, nas formas e nos dentes das mulheres mascaradas que rondavam por seu espaço. Tinha uma tara específica por bocas e dentes femininos, talvez se encaixasse num quadro de odaxelagnia ou algo do gênero. Preferia lábios médios aos enormes e dentes brancos aos amarelados.

Por entender mais do que gostaria sobre o sistema político e sua relação com o tráfico, omissão de informações, desvio de verbas e mortes compradas, seu estômago desenvolvera uma certa gastrite emocional. Tinha náuseas de pensar em algum desses esquemas. Muitas vezes seu trabalho era dar um falso parecer sobre a morte do cidadão, sentia-se como um açougueiro negligente. A ordem vinda de cima garantia seu gordo salário em troca de uma ficha suja de sangue, contendo mentiras das quais seus ansiolíticos davam conta de amenizar. Omeprazol e antiácidos sempre nos bolsos.

Ao esteriótipo externo, cidadão normal, bem vestido. As mulheres costumam acreditar em seu lado gentil e generoso. E não estão erradas totalmente. Por esse motivo consegue umas mordidas abusadas aqui e ali, mas não fixa-se a ninguém por medo de compartilhar suas visões mais obscuras ou encontrar alguém que o traga novamente o conforto de um sorriso, de um abraço sincero.

Sua última aquisição não foi o carro do ano, nem uma estradeira. Mas sim um abajur de canto, que lembrava muito os fins de tarde com seu pai, quando aprendera a ler. Filho único de pais falecidos, tudo o que remetia a uma anestésica nostalgia ele comprava, fosse o preço que cobrassem. De um lado do quarto, o piano lembrava sua mãe. Do outro, a poltrona que pertencia a seu pai trazia a calmaria depois de dias difíceis. Debaixo da cama, sua 9mm contrastava com o personagem que tentava ocultar do seu pequeno círculo de amizades.

Não é preciso muito para que afaste-se de alguém. Nunca se sabe com tipo de carne está lidando...


* Fragmento de um personagem que criei e que estará em algum romance em breve.. espero que gostem).


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Acabar

Segurando a mão direita de sua esposa, com sua velha mão esquerda, silenciava entre a gota de lágrima que caía sobre o tecido esverdeado de sua calça e outra que caíra, há pouco, sobre seus sapatos marrons.
A dor de uma lembrança que ardia em segundos, repaginando flashes de uma história inteira. Há mais de cinquenta anos transformaram sorrisos em ações, pensamentos em atos e se divertiram por tantos episódios que recheariam um livro imenso, maior que a Bíblia, melhor do que Shakespeare.

Sua dor era motivo suficiente pra cair nas graças das religiões escritas por homens, no pensamento obscuro do controle que tinha sobre sua vida, no que se arrepende de não ter feito.
Muito pouco, talvez. Poderia contar no dedo o que deixaram de fazer para tornar feliz o outro lado, mas isso pouco importava agora, que sua mão esfriava a cada minuto mais e o sol já não inundava o quarto do hospital com tanto fervor.

Nem nos momentos de maior solidão poderia descrever aquela imagem. Queria mesmo era acreditar que não via nada, não sentia, não existia.
Seus olhos pesados de alguém que tanto admirou a paisagem ao seu redor, eram agora acinzentados por nuvens de dúvidas, nuvens de abandono.

Por todos estes anos foram calço, apoio, degrau e pedra na vida um do outro. Todos os momentos bons haviam enobrecido os ruins, que dissolviam-se como areia neste momento tão particular. Um momento para decidir se morte é o partir, o pesar, a verdade.
Ou se é a passagem, o renascimento, a ilusão...

Por momento algum, desde que ficara doente, largou suas mãos. Antes delicadas por uma juventude macia e agora calejada pelas marcas do tato. Mas eram mãos que antes acalentavam, seguravam com a mesma vontade, as suas. E agora repousavam suavemente por entre seus dedos marcados pelo medo.

O medo da solidão, da negação. O medo de se ver só, sendo que por toda a vida havia depositado metade de tudo nas outras mãos. Eram quatro, eram dois, eram um.

Se o sentimento para descrever o abandono fosse arrependimento, certamente ninguém ficaria só.
Esse foi o risco que aceitou correr por amor. Essa foi a maneira que conseguiu apoiar e depositar suas esperanças que iam além da solidão.
Essa foi a escolha que talvez nem mesmo fosse sua.

Sabia que era o momento de chamar os médicos, fazer algumas ligações.. mas o efeito aniquilador do medo no amanhã o colocavam praticamente como concreto no chão. Deixaria as mãos, agora frias, para abrir a porta e encontrar o mundo visto de um lado só. Faria uma nova conta onde, um mais um, seria igual a um novamente.

Toda nebulosidade do momento extinguia seu próprio eu.
Todo momento negligenciava sua vontade de se mover... Mas era necessário.
Abriu as portas do mundo cinza e caminhou lentamente. A discrição mais afável para o que sentia era um tornado carregando seu coração ao centro e desintegrando pouco a pouco, jogando seus pedaços no ar.

Mas foi. Tinha que ir. Ali, no jardim do hospital...
E do sentimento se fez dúvida, quando o coração parou de bater e se encontraram, ou talvez não.
Do outro lado, ou em lugar nenhum.
Uma mesma história, ou nunca mais.



terça-feira, 2 de outubro de 2012

Josias

O último trago no último cigarro do dia. Mentolado. Deviam proibir essas merdas..
Josias tinha uma certa afeição por formas claras e hipocondria da vida. O medo lhe tomava todas as entranhas e fantasias, assim como a obsessão pela masturbação.
De longe, um homem normal, mas quieto. Cara de quem tem muitos segredos guardados.
Bom, ter, tinha. Mas ninguém sabia.

Depois de ter virado corno, era  fato que sua feição dava dó ao homem mais ingênuo e afeminado do mundo. Mas até que a galhada lhe servia bem.
Descobriu assim: ao chegar em casa do trabalho notou que sua mulher, como havia acontecendo frequentemente, ainda não havia chegado. Conferiu a secretária eletrônica (sim, estamos no século vinte e um, mas Josias ainda não), deu um tapa em sua bituca de baseado e ligou o computador.
Por uma distração estúpida, ou seria proposital, de sua mulher, lá  estava a caixa de e-mails aberta, logada, suja e sacana. Palavras descreviam noites ininterruptas de uma paixão calorosa que, pelas contas de Josias, estava fazendo aniversário de oito meses.

Oito meses. Agora imagine só qual é o número que Josias nem pode ver pela frente...
Descobriu assim, pronto. Esperou sua mulher chegar para lhe fazer as malas.
Mas esqueceu que o mal-sucedido era ele e o apartamento, dela.
Despejado e envergonhado, Josias aceitou a situação e perguntou se poderia ficar por mais um tempo até se estabilizar. Júlia deixou. Mas agora levava o amante para seu quarto.
Josias viajava imerso num sentimento tragicômico sem explicação. Às vezes ouvia os gemidos do quarto ao lado. Ora ouvia somente uma longa conversa, o que nunca havia feito com Júlia.

De tanto fazer terapia, o próprio psicólogo ligava pra pedir conselhos e avisar que havia chegado erva da sua estufa particular.
Internamente havia um buraco em Josias. Mas ninguém perguntava, ninguém sabia.
Era mais um uniformizado na empresa que chegava cedo no setor, saía tarde. Não se divertia no coletivo.
Por essas e outras razões começou a ter certo gosto pela morte.
O problema é que era a morte dos outros. Ou melhor, das outras.

Josias conseguiu seu primeiro trinta-e-oito com o psicólogo, que substituiu algumas das sessões de terapia por aulas de tiro. Ficou tão bom no assunto que logo estava treinando com alvos móveis, caçando pássaros e coelhos.
Conservou todo o seu desejo por suspense pra usar depois.
E foi assim, depois de levar sua primeira vítima ao motel mais próximo, fizeram sexo, conversaram, ela lhe deu atenção e ele a pediu que lhe chamasse de corno.
Claro que ela recusou, mas a insistência de Josias a fez dizer. Com um estampido abafado se afastou, incrédulo e sem reação. Pintou o número oito no abdômen da vítima com um pincel atômico e fez um smile em baixo, pra descontrair o ambiente.

Degustava uma sensação de medo, dor, alívio, sinceridade... quem era Josias? Se perguntou por mais trinta minutos até que chamou ao telefone, a carta de vinhos. Pediu o mais caro e deliciou-se. Olhava a mórbida cena.
Bizarra e grotesca.
Mas de certa forma havia achado o que procurava há tanto tempo.
De corno para doido varrido psicopata... ou não seria um doido?
Uma já havia sido...restavam sete. Mas por que raios tanto trauma com a galhada?!

Assim Josias começou o seu novo "trabalho". Sempre de formas diferentes.
Até hoje não sabem que é o seu rosto bobo e seu corpo franzino a última visão das vítimas.
E nem vão desconfiar.
Mas este, leitor, é segredo nosso.
Josias nem faz ideia que eu contei seu maior segredo a vocês.

E fim.