quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Carne

O cheiro de gente morta já não fazia tanta diferença na sua vida. Se tivesse ou não, tanto faz.
Depois de se tornar um investigador renomado e aprovado pelos escalões da alta classe policial seu cotidiano mudou completamente. Mas acabou se acostumando com o tempo, com o dinheiro, com a propina.

Não dormia quando, no começo, se envolvia em omissão de casos com resoluções óbvias e comprovadas até por não-peritos. Mas dizem que o tempo é o remédio para todas as dores. E devia ser.
Às vezes, de supetão, levantava da cama molhado de suor e com a imagem das pessoas que havia visto em condições nada humanas. Casos que tinham conclusão omissa, conforme mandam as disputas por poder.

Entre umas poucas saídas e outras, Eduardo tinha uma amiga que se passava por sua namorada para participarem de casas de swing. Tinha de ter alguma coisa pra distrair daquela vida alternativa que escolheu para seu próprio conforto.

Basicamente tinha atração por mulheres que mandavam nele. Algo que tinha de fingir fazer o tempo todo em sua vida, durante o expediente. Mas era nos fins de semana que deixava-se mandar por outra pessoa que não a sua própria sombra, nem seu superior. Deleitava-se nos contos, nas contas, nas formas e nos dentes das mulheres mascaradas que rondavam por seu espaço. Tinha uma tara específica por bocas e dentes femininos, talvez se encaixasse num quadro de odaxelagnia ou algo do gênero. Preferia lábios médios aos enormes e dentes brancos aos amarelados.

Por entender mais do que gostaria sobre o sistema político e sua relação com o tráfico, omissão de informações, desvio de verbas e mortes compradas, seu estômago desenvolvera uma certa gastrite emocional. Tinha náuseas de pensar em algum desses esquemas. Muitas vezes seu trabalho era dar um falso parecer sobre a morte do cidadão, sentia-se como um açougueiro negligente. A ordem vinda de cima garantia seu gordo salário em troca de uma ficha suja de sangue, contendo mentiras das quais seus ansiolíticos davam conta de amenizar. Omeprazol e antiácidos sempre nos bolsos.

Ao esteriótipo externo, cidadão normal, bem vestido. As mulheres costumam acreditar em seu lado gentil e generoso. E não estão erradas totalmente. Por esse motivo consegue umas mordidas abusadas aqui e ali, mas não fixa-se a ninguém por medo de compartilhar suas visões mais obscuras ou encontrar alguém que o traga novamente o conforto de um sorriso, de um abraço sincero.

Sua última aquisição não foi o carro do ano, nem uma estradeira. Mas sim um abajur de canto, que lembrava muito os fins de tarde com seu pai, quando aprendera a ler. Filho único de pais falecidos, tudo o que remetia a uma anestésica nostalgia ele comprava, fosse o preço que cobrassem. De um lado do quarto, o piano lembrava sua mãe. Do outro, a poltrona que pertencia a seu pai trazia a calmaria depois de dias difíceis. Debaixo da cama, sua 9mm contrastava com o personagem que tentava ocultar do seu pequeno círculo de amizades.

Não é preciso muito para que afaste-se de alguém. Nunca se sabe com tipo de carne está lidando...


* Fragmento de um personagem que criei e que estará em algum romance em breve.. espero que gostem).