terça-feira, 16 de outubro de 2012

Confissão

Estava um tempo "chove-não-molha" do lado de fora da igreja. Padre Everaldo comia osteas dentro do confessionário. Sem ninguém saber, claro. Ou faziam vista grossa, já que ele era o querido das confissões.
Além de osteas, molho de pimenta árabe. Só pra acompanhar.

Marco Antônio chegou esbaforido na igreja já enroscando a jaqueta na maçaneta da porta. Everaldo imaginou, pelo barulho e silhueta, que era ele. Os pelos do braço arrepiaram, pigarreou e limpou os dentes, embora ninguém pudesse vê-los.

Marco não confessava havia dois anos. Virou ateu por esse período, pouco antes de ver sua sogra morrer engasgada com bolinho-de-arroz. Estavam sozinhos na casa dele. A mulher jamais o perdoou, achava que tinha realmente matado a velha. Pediu divórcio. Marco passou a beber. Nunca mais fritou bolinhos-de-arroz, sua especialidade na época.

Abriu a porta do confessionário, sentou-se, ainda molhado.
- Padre Everaldo?!
- Sim, meu filho, Deus o abençoe. Que mandas?
- Pô, Aldo (era assim que o chamava antes de virar ateu), to com uns pepinos aí.. acho que pequei.
- Me explica melhor, Tonho..
- Sabe o que foi, Aldo.. desde que vi minha sogra morrer engasgada com o bolinho-de-arroz, uma especialidade minha na cozinha, diga-se de passagem, o trauma foi forte. Minha vida mudou e nem mais em Deus quis confiar meus problemas...
- O demônio aproveitou para se apossar, meu filho, ele chega nessas horas.. continue.
- Então, o bolinho demoníaco entrou em minha vida dessa forma traiçoeira. Depois que a Celina me abandonou achando que eu matei a velha, comecei a ter sonhos terríveis!!
- Hun, fale mais, meu filho..
- Sonhava com a minha sogra correndo atrás de mim, espumando pela boca e arremessando bolinhos-de-arroz, atrás dela vinha a Celina com a cruz e atrás da cruz, o Beraldo.
- Quem?!
- Beraldo, Aldo, o cozinheiro que me passou a receita dos bolinhos e que, mais tarde, descobri que a Celina caía de boca não só nos pratos que ele fazia.
- Santo Deus..
- Pois é.. E tem coisa pior ainda. Fiquei carente, sabe como é, um ano inteirinho sozinho...
- Pecou aí?
- Calma, ainda não. Fui atrás de uma profissional, sabe.. do sexo.
- Puta, Tonho?!
- Não! Profissional do sexo, Aldo! Olha o modo de falar...
- Sei.. e o que aconteceu depois disso?!
- Bom, no começo eu ia até o motel com ela e conversávamos. Muito. Essas profissionais são umas belas psicólogas às vezes. Colocam a gente lá em cima, sabe..
- Não..
- Bom, enfim, conversamos muito. Umas doze idas de conversa no motel. Até que começou a rolar uma confiança e me deixei levar.
- Mas pagou por sexo?
- É.. uma hora eu não aguentei, Aldo, a moça lá peladinha da silva já sem paciência com as minhas conversas de carência e decepção amorosa.. Acabou me atacando. A moça sabia fazer o lance todo e eu achei que fosse morrer. Mas foram passando os encontros, a gente foi se afinando..
- Afinando?
- Criando afinidade, Aldo. Os gostos batiam.. sabe como é, né..
- Não.
- Porra, é modo de dizer!!!
- Ah sim, claro, continue..
- Até que ela me chamou para o flat dela... conhecer. Ela estava de mudança e queria que eu ajudasse na decoração. Fui. No bolso levei um azulzinho pra garantir. Idade, né, Aldo.. você nem sempre pode contar com aquela amizade firme de antes com o Tinoco.
- Tinoco?!
- Bom, esquece essa parte. Fui pra casa da moça. Estela era o nome dela. O artístico era Space Girl.
- Ave Maria..
- Pois foi exatamente isso! Rezei, como há muito tempo não fazia, uma Ave Maria! Só pra garantir.. pra quem já havia voltado a crer, tinha noção de que estava pecando.
- Subi no flat. Ela estava limpando as coisas.. de calcinha! Só de calcinha, Aldo.. Aí é pra quebrar a banca, né? Pedi um copo d'água.
- Pra tomar o azulzinho?
- Isso.
- Tomei. Escondido, claro.
- Pelas minhas contas, tu vai ter que rezar muito pra enfrentar o demônio..
- Calma, Aldo, tem mais. A gente acabou se pegando ali mesmo, na sala, rolando no tapete persa dela de um lado para o outro na nave da Space Girl. Aí já viu. Bateu a fome.
- Mais?
- Não, Aldo, fome de comida mesmo, porra!
- Ah sim, claro.. continue..
- Ela sugeriu que eu fosse tomar um banho que ela ia cozinhar algo pra nós dois. Ela também estava caidinha por mim, nem cobrava havia uns três meses. Mas do chuveiro comecei a sentir um cheiro bem familiar..
- De quê?
- Bolinho-de-arroz. Claro que pensei que fosse um lapso da minha síndrome do pânico atacando. Mas quando eu saí do chuveiro, padre.. de toalha mesmo, vi os benditos fritinhos em cima da mesa. Comecei a suar frio e quando Estela me viu, foi logo me socorrer. Mas não quis contar o que estava acontecendo e ela disse que era fome. Nos sentamos à mesa..
- Ai meu Deus..
- Até aí tudo bem. O problema era fazer desfeita com a merda dos bolinhos.. comi um. Tudo bem. Até que.. vai vendo a maldição, Aldo: a Estela começou a tossir e não parava mais!! Tossia e esbugalhava os olhinhos, bebia vinho mas não adiantava nada. Fiquei louco. Comecei a bater nas costas dela, sacudir, balançar a cabeça.. acho que me esforcei tanto que..
- Que...?
- Acho que matei a puta, seu Aldo.
- Ah, agora é puta?
- Ah sim, me desculpa, Estela.
- Puta merda, hein, Tonho?! Desse jeito a coisa fica séria.. E a moça? O que que você fez?
- Saí correndo, Aldo. Como uma moça, na ponta do pé. Pulei o muro da garagem pro porteiro não me ver. Pequei, padre... muito!
- É... mas foi logo querer casar com puta, Tonho! Pera aí, deixa eu calcular a penitência.. Tem calculadora científica aí?
- Não fode, Aldo.. pô, e a amizade?
- Está crendo novamente?
- Sim!
- Na hora do aperto..
- Aldo, vai, me diz o que eu tenho que fazer logo pra Deus me perdoar. Tenho um medo dos infernos do demônio querer me puxar pra baixo quando eu morrer.. até choro de pensar.
- Anota aí. Vinte vezes o pai-nosso, vinte vezes ave-maria, ajoelhado no milho. E uma doação de ostea para a igreja.
- Ostea??
- Isso. Ah, e molho de pimenta árabe. Sabe como é, o bispo vem fazer visita no fim do mês e ele adora um molhinho desses...
- Pô, Aldo.. acha que assim Deus vai me perdoar??
- Olha.. veja bem, Tonho. O pecado foi forte, né?
- Eu sei, padre.. dá uma força aí porque eu já to sentindo o calor do inferno aqui na sola do pé!!
- Bom, vou ver o que eu posso fazer.. e vê se não me apronta mais com puta hein. Quer dizer, com ninguém!
- Ta bom, Aldo.. vou fazer o que me pediu.. lá no milho.

Foi saindo do confessionário em direção a saída. Quando Everaldo lhe chama.

-Tonho! As osteas, as osteas!!
- Deixa comigo!