terça-feira, 9 de outubro de 2012

Acabar

Segurando a mão direita de sua esposa, com sua velha mão esquerda, silenciava entre a gota de lágrima que caía sobre o tecido esverdeado de sua calça e outra que caíra, há pouco, sobre seus sapatos marrons.
A dor de uma lembrança que ardia em segundos, repaginando flashes de uma história inteira. Há mais de cinquenta anos transformaram sorrisos em ações, pensamentos em atos e se divertiram por tantos episódios que recheariam um livro imenso, maior que a Bíblia, melhor do que Shakespeare.

Sua dor era motivo suficiente pra cair nas graças das religiões escritas por homens, no pensamento obscuro do controle que tinha sobre sua vida, no que se arrepende de não ter feito.
Muito pouco, talvez. Poderia contar no dedo o que deixaram de fazer para tornar feliz o outro lado, mas isso pouco importava agora, que sua mão esfriava a cada minuto mais e o sol já não inundava o quarto do hospital com tanto fervor.

Nem nos momentos de maior solidão poderia descrever aquela imagem. Queria mesmo era acreditar que não via nada, não sentia, não existia.
Seus olhos pesados de alguém que tanto admirou a paisagem ao seu redor, eram agora acinzentados por nuvens de dúvidas, nuvens de abandono.

Por todos estes anos foram calço, apoio, degrau e pedra na vida um do outro. Todos os momentos bons haviam enobrecido os ruins, que dissolviam-se como areia neste momento tão particular. Um momento para decidir se morte é o partir, o pesar, a verdade.
Ou se é a passagem, o renascimento, a ilusão...

Por momento algum, desde que ficara doente, largou suas mãos. Antes delicadas por uma juventude macia e agora calejada pelas marcas do tato. Mas eram mãos que antes acalentavam, seguravam com a mesma vontade, as suas. E agora repousavam suavemente por entre seus dedos marcados pelo medo.

O medo da solidão, da negação. O medo de se ver só, sendo que por toda a vida havia depositado metade de tudo nas outras mãos. Eram quatro, eram dois, eram um.

Se o sentimento para descrever o abandono fosse arrependimento, certamente ninguém ficaria só.
Esse foi o risco que aceitou correr por amor. Essa foi a maneira que conseguiu apoiar e depositar suas esperanças que iam além da solidão.
Essa foi a escolha que talvez nem mesmo fosse sua.

Sabia que era o momento de chamar os médicos, fazer algumas ligações.. mas o efeito aniquilador do medo no amanhã o colocavam praticamente como concreto no chão. Deixaria as mãos, agora frias, para abrir a porta e encontrar o mundo visto de um lado só. Faria uma nova conta onde, um mais um, seria igual a um novamente.

Toda nebulosidade do momento extinguia seu próprio eu.
Todo momento negligenciava sua vontade de se mover... Mas era necessário.
Abriu as portas do mundo cinza e caminhou lentamente. A discrição mais afável para o que sentia era um tornado carregando seu coração ao centro e desintegrando pouco a pouco, jogando seus pedaços no ar.

Mas foi. Tinha que ir. Ali, no jardim do hospital...
E do sentimento se fez dúvida, quando o coração parou de bater e se encontraram, ou talvez não.
Do outro lado, ou em lugar nenhum.
Uma mesma história, ou nunca mais.