terça-feira, 31 de julho de 2012

Descontentamento

Se ajoelha, sente o peso da bagagem e fica observando como o céu pode ser, ao mesmo tempo lindo e amedrontador. Sente o corte na língua que faz escorrer o sangue daquele que usou o maldizer.
Entristece, logo anima...
A camuflagem da farda da vida acompanha o fardo da morte. Onde carrega toda a bagagem sem saber até onde aquilo vai dar.
Se der, diga-se de passagem.
Quando o caminho é longo, reclamamos. Quando curto demais, reclamamos.
Quando fácil, perde a graça. Quando difícil, perde motivação..
Isso tudo nada mais é que o DESCONTENTAMENTO.

O descontentamento é o que te faz viver. Se todos estivessem em plena felicidade e contentamento não haveria motivo para se refazer, reinventar. As novas ideias sempre surgem daqueles que estão descontentes com alguma coisa e querem melhorar.
E se o riso for mesmo a camuflagem da dor de viver, que seja eterno..

O quanto de tempo levar, o quanto de água cursar o teu caminho... não importa.
Se Deus é o amigo imaginário dos adultos ou o verdadeiro criador, me desculpe, não sei lhe responder.. Nem você, que afirma com tantas certezas e descrições.
Minha vertigem é sentida quando não posso mudar o que me descontenta, sensação nauseante.

Mas o que aprende-se, é que nada depende exclusivamente de você.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Assalto

Parei no posto de gasolina tarde da noite pra colocar etanol... entrego as chaves do carro ao frentista, me desarmo do meu poder do acelerador e encaro a situação numa boa.
A bomba parece trabalhar mais devagar e aproveito o momento pra observar o movimento.
Um caminhão de combustível parado em frente. Um rapaz de capuz e boné próximo ao caminhão apressa o passo de um lado ao outro, parece nervoso...

Seu Joel pensa na sua Pitchula, como costuma chamar a rechonchuda e loira namorada de um mês e pouco.  A vida deles banha-se em sexos mil. Na verdade, Joel pensa em Pitchula nua... enquanto registra mais um valor na bomba de gasolina...

Tudo certo, penso... Acho que o tanque tá quase cheio.

Manolo segue com seu carro um pouco mais a frente para checar o óleo. Mas pera, são quase duas da matina, seu Manolo... Enfim. Desce o Manoel com todo o seu tique. Tem transtorno obsessivo, coitado. Revira os olhos e faz o frentista abrir e fechar o tampo do capô três vezes. E meia. Sim, a última é a mais importante do ritual...

Porra, que demora!

Chegam os funkeiros. Carro rebaixado, som alto, risada alta. Pensam em pegar as menininhas e talvez comê-las até o dia raiar. Isso é o que de fato tentam... tem gosto pra tudo. Uma escarrada pra fora do carro.. que pena que meus vidros não sobem sem a chave no contato.

Vejo o frentista se aproximar.

Tamires aguarda o tanque da sua moto encher. O frio tá do cacete... Só ela sabe a saga de ter dois trabalhos pra sustentar marido folgado que não paga a pensão dos meninos. Dá duro na faxina e atrás do balcão. Sai os filhos dormem, chega, idem...

Pego minha carteira..

O rapaz de boné e capuz inventa de dar uma checada no motor também. Talvez seja a moda fazer revisão na madrugada. Frentista puto, posto cheio.

Separo a grana....

Carro de bacana, como dizem, pára ao meu lado. Desce o magnata. Nariz vermelho, três mulheres no carro bebericando Jack-Cola a granel. Magnata manda completar, coça o saco, tira catota, peida e dá uma volta no carro pro cheiro dissipar. Talvez tenha arrotado também, mas não percebi. Tinha cara de Jonas.

Cara do boné encosta mais no frentista, ficam atrás da bomba e perco a minha visão. Porra, cadê o frentista??? Quero ir embora mas o cara não vem receber...

"Perdeu, perdeu!!!!!"

Só dá tempo de escutar isso, cantada de pneu, três motos a mais. Caos.
Joel só pensa se ainda verá Pitchula.
Manolo começa seu ritual.
Tamires pensa nos filhos.
O cara com cara de Jonas prepara o três-oitão do porta-luvas. Estava macho.
Eu, por minha vez, me cago.

Fração de segundos. Tudo levado. Nada mantido. Ao menos as vidas.

Penso, logo, muito.

Volto à realidade, feliz por ser imaginação...
Seu Joel cobra. Eu pago.
Nem confiro a bomba que não explodiu.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Repartição

Fora da repartição, Marcela, a recepcionista parou de fazer as unhas e atualizar o perfil no Facebook quando avistou um dos clientes que se aproximava. Estava com uma lingerie de renda, estilo fio-dental para que quando saísse do trabalho encontrasse seu namorado e fossem ao motel.

Do lado de dentro da repartição pública seu Anestor fingia trabalhar freneticamente em documentos vazios no word, enquanto jogava paciência e pensava na partida de poker daquela noite, onde comeria a amante para depois falar pra sua esposa que o trabalho atrasou e ela fingir acreditar que realmente funcionário público não tem hora pra sair. Gostava de cutucar o nariz bem fundo e grudar debaixo da cadeira.

Dona Matilde fazia o café. Só observava.. sabia de tudo. Aliás, porque ela mesmo que limpava as cadeiras. Menos e de seu Anestor.

Seu Eloísio também fingia.. Fingia que não era gay. Embora fosse realmente difícil esconder as reboladas ora ou outra com seus "um e noventa e dois" de altura. Nada discreto. Fazia luzes no cabelo e fumava pelas ventas o dia todo. Sempre era hora de sair para fumar e tomar (quase) todo o café que dona Matilde fazia.

Maria Luíza cheirava tudo, coitada. Quando não tinha pó, cheirava fungo dos arquivos que era encaminhada de cuidar. Era pó de sujeira, pó de coca, pó de aspirador que, vez ou outra dona Matilde aspirava. Café não tomava, pois dizia que acelerava seu coração.. Matilde fingia que não sabia do talquinho branco quando conversava com ela. Olhos de esquilo frenético, pronto para sair correndo para qualquer lugar que não fossem aqueles arquivos.

Dona Matilde lavava os copos. Seu Eloísio almoçava pensando no bofe. Dona Matilde sabia.

Anestor saía sempre pra almoçar fora, não gostava muito dos companheiros de repartição. No caminho para o restaurante mais próximo, contabilizava as bundas que conseguia fotografar mentalmente enquanto conversava com sua esposa no celular sobre como iriam pagar o IPTU daquele ano. Dava aquelas olhadas indiscretas mesmo, que sugam as calçoilas mais desprevenidas e desnudam qualquer uma que estivesse apta para o amor.

Marcela estava apaixonada. Fazia de tudo para o seu amor enquanto ele dava duro, literalmente, nas gravações de seus filmes. Dizia ser ator... só não falava de quê, coitada da Marcelinha.. João, o namorado dela gravava filme pornô gay. Talvez seu Eloísio o tenha visto em alguma telinha..

Ah, essas relações interpessoais..

Dona Matilde varria a recepção do departamento enquanto Maria Luíza grampeava alguns documentos. Ora os dedos, quando estava com o pó mágico de esquilo.

Depois do almoço todos voltavam para a repartição, faziam unha, cabelo, barba e bigode e fingiam que a responsabilidade era enorme e que o volume de trabalho requeria um salário maior. Juntavam-se somente quando queriam um aumento, provocariam greve e reivindicariam seus direitos.

Depois trairiam, fingiriam, enganariam, cheirariam e trabalhariam um pouco, porque ninguém é de ferro...

E dona Matilde voltava todos os dias pra casa, duas conduções, pensando na roupa na máquina de lavar que tinha que pendurar, na janta que tinha pra fazer, nos filhos que tinha pra criar e no marido que chegaria bêbado mais uma vez e teria que cuidar.

No dia seguinte estariam todos lá, fingindo que fingiam enganar.
E talvez conseguissem... só não enganavam dona Matilde.
Ah se ela escrevesse um livro...!


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Cadeira de Cabaré

Uma música antiga no rádio a fez lembrar da última vez que tinha se libertado daquelas amarras. Espartilho, cinta-liga, renda firme. Nada como relembrar os tempos no cabaré.. Por um lado escondia, pelo outro sentia orgulho.
Aquelas marcas na pele, as rugas, dobras e calos juntavam-se para impulsionar a cadeira de balanço na varanda do quintal, de onde avistava vários outros como ela, também balançando suas fiéis cadeiras. Não mais as cadeiras de antigamente.. as suas... agora eram cadeiras de madeira que rangiam ao menor dos movimentos.

Esbórnia máxima agora era o momento da integração entre os novos habitantes, aniversariantes e da distribuição de cigarro. Sabia que a cerveja era sem álcool e o vinho era suco de uva integral...
Mas não tirava a alegria daqueles que acreditavam se embebedar e dançavam com suas bengalas ao alto, em pares, sempre ao ritmo da valsa antiga que, provavelmente, ainda lhes soava nos ouvidos. Orelhas grandes.. dizem que estas nunca param de crescer.
Pela escolha da histeria antiga, acabava ali sentada na cadeira de balanço durante o sol matinal que não gostava de compartilhar com muitas pessoas... mas observava sobre o que conversavam.
Tinha faro bom e afiado pra filtrar as histórias de gente antiga como ela. A maioria aumentava muitos pontos nos contos infindáveis sobre boemias e noitadas... só ela realmente sabia como era ser boêmia.


Escritores, intelectuais, médicos, advogados, vagabundos... todos esses tipos passaram por seus seios rijos de amor. Alguns em busca de amor, outros de prazeres, outros tantos de um colo pra chorar.. Sim, nem tudo era farra.
Alguns aqui e ali pagavam a bebida para o bar todo e nestas noites, quando a coisa começava assim, só terminava ao meio-dia da próxima tarde.
Quando a idade chegou, lembra-se bem, ninguém lhe dava créditos pelas escolhas erradas, teoricamente, porém certeiras, quem sabe.. Levaram-na para um asilo "ajeitadinho", como ela mesma costumava chamar.
E percebeu que, independente da marca de colas para dentadura dos velhos, compartilhavam em conjunto a solidão que assolava suas mentes durante a noite. Durante o dia, a partilha da mesa nas refeições e a divisão dos quartos.
Quase que uma prisão domiciliar, pensava. Observava como ainda era possível sorrir, com ou sem dentadura, sem o medo de mostrar as rugas que a vida lhe causou, seja por bem ou mal, ou apenas pelo movimento natural da pele que luta contra a gravidade de Newton.
Assim como lutamos contra muitas coisas durante a vida toda para somente lá na ponta da estrada percebermos que nem tudo valia tanto a pena assim perder seus valiosos minutos.
Mas pronto, mais um segundo e já passou.


Só que parecia que todos ali estavam juntos por um motivo de descoberta. Claro que sem querer. Mas todos queriam descobrir novamente como era viver.. de uma forma bonita.
É como que se o direito virasse obrigação e o mundo lá fora largasse os vícios, as questões banais e se abraçassem dentro do limite em que o andador permitisse o afago.
Já não importava mais se vinha do cabaré, da padaria ou do escritório. Todos compartilhavam marcas da vida, seja o caminho que escolheram..


E a esbórnia antiga tornou-se uma mera fase que não queria esquecer.. mas só lembrar com carinho que a vida passa. Ela tinha feito o que gostava, sem sequer magoar ninguém... "isso valeu..." pensou enquanto o balanço da cadeira rangente largava em seus braços uma dançarina doce de cabaré, com a tranquilidade de uma bailarina a passos leves. E na ponta dos pés, no seu silêncio não mais perturbador, deixou-se levar para os tais julgamentos que se espera encontrar quanto o vento não mais sopra, a cadeira não mais balança....